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News & Events DESIGUALDADES NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Helena Silvestre sobre o caso de São Paulo
DESIGUALDADES NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Helena Silvestre sobre o caso de São Paulo
DESIGUALDADES NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Helena Silvestre sobre o caso de São Paulo
Foto: Marcelo Rocha
Foto: Marcelo Rocha

Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19. 

A entrevistada de hoje é Helena Silvestre, integrante de Revista Amazonas e da Escola Feminista Abya Yala.

Foto: Marcelo Rocha

 

Foto: Marcelo Rocha

AM -Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso ao poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje?

HS - A região metropolitana de São Paulo tem cidades bastante estruturadas, como São Bernardo ou São Caetano, que cresceram no impulso do “progresso e do desenvolvimento” brasileiros sendo sede de montadoras de automóveis durante os anos 70, 80 e 90. 

Mauá foi surgindo daquilo que as cidades estruturadas expulsavam. Surgindo de camadas de trabalhadores já precarizados, que não trabalhavam diretamente nas montadoras mas já em terceirizações ou mesmo quarteirizações que lhes pagavam tão mal que era impossível viver onde se trabalhava e era necessário morar mais longe, onde a falta de infraestrutura reduzia o custo e tornava possível pagar um aluguel ou parcelar um terreno num loteamento que também resolveram chamar de clandestino. Eu levei muito tempo para entender sobre racismo.
 
A pergunta admite duas respostas diferentes. Se você circula – como eu passei a circular para além do meu bairro, se você toca de longe o que é a vida e os lugares de moradia das classes médias – como eu pude tocar e como podem tocar tantas trabalhadoras domésticas que cruzam mundos todos os dias, então é evidente que a cidade possui uma rigorosa marca na sua distribuição, no seu desenho, que fica mais negro quanto mais se afasta dos “centros” onde abundam infraestrutura, serviços que funcionam razoavelmente e acessos.  Mas se você não circula, isso não é vidente.
 
A cidade formal, visível, vendável, propagandeada, sobrevive sugando a cidade clandestina, dormitório, informal, invisível e saqueada. Na história mais recente, isso se entrelaça com a urbanização do país associado à sua industrialização com baixos salários e hiper-concentração no sudeste brasileiro. Mas remonta historicamente ao marco colonizador, à escravidão, que arrancou os povos originários de seus territórios, que desterrou também africanos sequestrados e escravizados que sequer figuravam como humanos, muito menos como sujeitos de direito à propriedade – única maneira pela qual se passou a reconhecer o acesso à terra. 
 
Foto: Marcelo Rocha
Foto: Marcelo Rocha
 

AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década?

HS - Hoje é difícil falar da cidade de São Paulo desmembrada da região metropolitana e nessa região nós vemos a força da especulação imobiliária reorganizando o desenho da cidade de modo constante num sentido que é único: o sentido da concentração. 

Territórios antes inóspitos tornam-se bairros infra estruturados às custas do trabalho coletivo de faveladxs ao longo de duas décadas e então, já providos do que é essencial para se viver dignamente passa a ser alvo da especulação e do higienismo, que atua expulsando quem não possa sustentar um custo de vida maior, e atraindo setores com mais dinheiro. Essa expulsão pode se dar pelo aumento do custo de vida, deslocando gente compulsoriamente por violências monetárias, ou pode se dar pelo despejo fisicamente violento mesmo, com violações de muitos direitos humanos, com a destruição de pertences, memórias e laços de uma comunidade inteiras jogadas à própria sorte.
 
Muitos urbanistas alimentaram muito tempo o fetiche de que se tratava de uma falta de planejamento, mas na verdade esse é o plano. O plano é essa forma urbana segregada que mostra uma população mais negra quanto mais se avança para longe do centro, onde estão os serviços, a infraestrutura e os direitos. O centro dinâmico e colonizador não precisa necessariamente ser o centro geográfico. 
 
Isso é estrutural mas na última década, os megaeventos e suas obras como a do estádio Itaquerão, a disputa pela privatização das ruas pós 2013, os incessantes despejos e o avanço da especulação a regiões cada vez mais distantes reforçou o caráter de classe da cidade, territorialmente segregado e racializado.
Foto: Marcelo Rocha
Foto: Marcelo Rocha
 

AM - O direito a cidade, e o direito a posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político daspessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas?

HS - Eu faço parte do movimento de moradia há vários anos, desde 2003 mais precisamente, primeiro no MTST e a partir de 2011 no movimento Luta Popular. As ocupações são fundamentais porque provém caminho para acesso à moradia a pessoas que não teriam acesso de outra maneira, pelas vias formais do mercado. 

As mulheres são a maioria ativa das ocupações, seja porque somos maioria numérica ou seja porque somos as que mais se dedicam aos trabalhos coletivos que sustentam de pé essa disputa por território entre o capital e a vida.
 
Algumas políticas públicas foram desenvolvidas para esta questão, sobretudo nos anos dourados de forte investimento na indústria da construção civil, em que empreiteiras e incorporadoras tanto ganharam. Uma dessas políticas estabeleceu que a titularidade de imóveis adquiridos através de políticas sociais de habitação popular ficasse em nome das mulheres. 
 
Lutamos para que todos tenham moradias seguras, do ponto de vista de sua estrutura física e capacidade de acolhimento quanto do ponto de vista jurídico, que não estejam permanentemente ameaçadas pelos despejos e inseguranças jurídicas. Mas esta é apenas a camada mais superficial do problema.
 
A única maneira legítima de acesso à terra não pode ser a forma jurídica da propriedade privada. Isso será sempre um impedimento ao acesso universal à terra como direito básico, devido à tudo o que vive, humano ou não humano. Essa forma própria do capitalismo, que antagoniza público e privado impedindo o usufruto comum, precisa ser superada porque ela é também a que confina as mulheres na sub-cidadania, inviabilizando que para nós se realize algum dia o ideal de cidade democrática que propaga o discurso oficial.
 
Foto: Marcelo Rocha
Foto: Marcelo Rocha
 

AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do sul global cria formas específicas na organização do espaço e moradias em áreas de pobreza densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade? 

HS - São Paulo vive um caos. A cidade segregada atravessa essa pandemia como se fossem muitas cidades. A superconcentração de pessoas em territórios favelados e/ou periféricos faz com que a orientação de "evitar aglomerações" seja estruturalmente impossível. A região metropolitana de São Paulo concentra algumas das cidades mais adensadas do país, como Diadema ou Taboão da Serra.

Paraisópolis e Heliópolis são duas das maiores favelas do Brasil (estão entre as dez maiores) e ambas se localizam na periferia sul de São Paulo. Paraisópolis tem quase 43 mil habitantes e Heliópolis pouca mais que 41 mil. Existem cidades com menos gente do que há nessas favelas. 
 
No primeiro mês de isolamento social voluntário, a Coalizão do Clima mapeou comunidades com falta de água na cidade, chegaram a 277 locais, comunidades e favelas periféricas onde a fome também chegou rapidamente, tão rapidamente quanto à propagação da doença. Todas as orientações que primeiro chegaram eram simples reproduções das orientações produzidas em países da Europa e ignoravam a condição objetiva da imensa maioria da população brasileira. Um discurso europeu, que não parecia estar interessado em sua real eficácia para prevenir mortes de pobres. 
 
A pandemia funciona como uma lupa: ela não cria os problemas mas os evidencia e se tornam impossíveis de negar. Estruturalmente o estado está presente nas periferias e favelas como força policial repressiva, é assim que ele se apresenta ostensivamente nesses territórios. Também se insere aí a partir da capilaridade do sistema de ensino público, ultra-sucateado e disciplinador. Com a suspensão das aulas, o que ficou do estado nas periferias, foi a polícia, aproveitando-se das ruas vazias para aprofundar o genocídio em curso há 500 anos. Enquanto numa parte da cidade as pessoas falam de ficar em casa, de praticar esportes, de se alimentar de modo saudável ou meditar, na maior parte da metrópole as pessoas se desesperam sem comida, sem água, sem trabalho e sem renda alguma, cercadas por crianças famintas que quando adolescentes são assassinadas pela violência do estado. A política é ao mesmo tempo matar e deixar morrer. 
 
Helena Silvestre
Militante do movimento Luta Popular, editora da Revista Amazonas e integrante da Escola Feminista Abya Yala.