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News & Events O Estado-nação nicaraguense: Imposição de governos paralelos e desrespeito à autonomia dos povos da costa do Caribe
O Estado-nação nicaraguense: Imposição de governos paralelos e desrespeito à autonomia dos povos da costa do Caribe
O Estado-nação nicaraguense: Imposição de governos paralelos e desrespeito à autonomia dos povos da costa do Caribe
Fonte: APIAN
Fonte: APIAN

Por APIAN – Aliança de Povos Indígenas e Afrodescendentes da Nicarágua

Pouco se sabe internacionalmente sobre a divisão política da Nicarágua em termos culturais, étnicos/raciais e, sobretudo, sobre a forma como o poder e a vida estão organizados com base em modelos comunitários que escaparam às imposições coloniais do Estado. Após mais de meio século de luta por seu direito à autonomia, desde a incorporação forçada da costa caribenha (ou povos Moskitia) na República da Nicarágua no final do século XIX, finalmente em 1987 foi aprovada a lei 28 Estatuto de Autonomia da Costa Atlântica da Nicarágua. Foi preciso muito derramamento de sangue e revoltas na costa nicaraguense do Caribe para finalmente ganhar o reconhecimento de que existem povos afro-descendentes e indígenas na Nicarágua e que essas comunidades têm o direito de se autogovernar e administrar os recursos naturais de seus territórios com base em suas formas ancestrais e tradicionais de entender o mundo e a vida. Como resultado da Lei 28, foram criadas as Regiões Autônomas da Costa do Caribe, divididas em Norte e Sul (RACCN e RACCS), como mostrado no mapa da divisão territorial da Nicarágua. 

Fonte: IIDH.

Divisão Territorial da Nicarágua. Fonte: IIDH.

A Lei 28 foi o início do reconhecimento legal da propriedade comunal da terra no Caribe e do direito de autogovernança. Entretanto, a luta continuou até que a Lei 445 sobre o Regime de Propriedade Comunal foi conquistada. Esta lei estipula os procedimentos para a demarcação e titulação de terras comunitárias. O Estado nicaraguense ganhou reconhecimento internacional como tendo uma das mais abrangentes leis que reconhecem os direitos indígenas à autonomia e à gestão da terra e de seus recursos. No entanto, apesar de ter intitulado 24 territórios para comunidades indígenas e afrodescendentes, como mostrado no mapa da Aliança dos Povos Indígenas e Afrodescendentes da Nicarágua (APIAN), esta legislação não foi posta em prática devido aos múltiplos ataques e agressões perpetrados pelo Estado nicaraguense em sua interferência e imposição de governos aliados ao Estado nas regiões autônomas do Caribe. 

Fonte: LandSat 8 e Sentinel 2A

Uso atual da terra, Territórios Indígenas/Afro-descendentes e Áreas Protegidas. Fonte: LandSat 8 e Sentinel 2A.

Na primeira semana de março, na comunidade de Amak, no Território Mayangna Sauni Bu, Caribe Norte da Nicarágua, o Estado impôs Rodrigo López como governante, que não foi escolhido através dos processos de votação tradicionais que acontecem nas assembléias comunitárias. Os membros da comunidade deste povoado foram protestar no local onde López foi entregue ao poder, e a entrega foi feita à porta fechada. Apesar de ter sido negado aos membros da comunidade o acesso às instalações, eles e elas vieram protestar contra este ato que viola seus direitos de autonomia. É assim que o Estado nicaraguense fere e assedia constantemente o tecido dos governos comunais do Caribe para finalmente impor suas decisões sobre as terras ancestrais através de aliados internos rejeitados pela própria comunidade. Algumas pessoas de Amack expressaram que 95% da comunidade rejeita López como representante, porque embora ele seja chamado de líder ou presidente, esta nomenclatura ocidental não representa o que as atribuições destas pessoas escolhidas nas assembléias realmente significam, já que sua função é comunicar ao Estado as decisões da máxima autoridade: a comunidade.  

As e os membros da comunidade Amack se reúnem no local onde Rodrigo Lopez recebe o poder à porta fechada. Fonte: Comunitarios(as) de Amack

Como consequência do protesto, a polícia nacional, aliada ao governo sandinista, respondeu com tiros aos protestos das e dos habitantes deste território enquanto se manifestavam contra a imposição de um governo ilegítimo. As assembléias comunitárias e territoriais são os locais onde as e os representantes das comunidades são eleitos; entretanto, é importante enfatizar que no modelo comunitário de governo, a autoridade máxima é a Assembléia Comunal e não os representantes individuais (1). As pessoas escolhidas dentro das assembléias podem ser afastadas do cargo se não cumprirem com as decisões acordadas como comunidade. 

A polícia nacional nicaraguense dispara enquanto a população em Amack se manifesta contra a imposição do Estado nicaraguense de governantes aliados. Fonte: Comunitarios(as) de Amack

Enquanto o mundo se comove com a violência e a guerra na Ucrânia, estes mesmos episódios de violência contra a vida de seres humanos também estão acontecendo em outras partes do mundo sem nenhuma atenção da mídia para registrar o horror das balas, do racismo e do etnocentrismo. Os povos caribenhos da Nicarágua continuam sendo assassinados e assassinadas e nós continuamos insistindo em denunciar a violência estatal que aniquila essas populações. 

O sequestro e assassinato de Salomon Lopez Smit

Fonte: Comunitarios e comunitarias Indígenas Mayangnas

Salomon Lopez Smit. Fonte: Comunitarios e comunitarias Indígenas Mayangnas

No dia 8 de março, o dia em que as lutas, conquistas e resistência das mulheres são comemoradas em várias partes do mundo, Salomon López Smit foi sequestrado na Nicarágua enquanto trabalhava em suas plantações. López era originário da comunidade de Pansuhwas, Território Sauni Arungka, do Povo Indígena Mayangna. A principal mobilização para encontrar Salomon López foi realizada por pessoas de sua comunidade e comunidades vizinhas, pois é comum que haja omissão ou pouca resposta da polícia nacional nicaraguense para esclarecer os assassinatos de povos indígenas e afro-nicaraguenses. Omitir o reconhecimento da violência e da morte no Caribe, dirigida aos povos indígenas, é parte de uma imagem que o governo nicaraguense insiste em manter principalmente no âmbito internacional. Esta imagem esconde o colonialismo interno e o genocídio em curso que é vivido no cotidiano das comunidades nas regiões autônomas. 

O corpo de Salomon foi encontrado por sua própria comunidade, mais um crime cometido por pessoas não indígenas do Pacífico da Nicarágua, que ocupam ilegalmente territórios ancestrais do Caribe. Em sua comunidade, Salomon é lembrado como um homem que amava o esporte, tendo participado das Olimpíadas Indígenas no Brasil em 2015. Ele participou do lançamento de flechas e ganhou o segundo lugar nesta competição.  Com a interrupção da vida de Salomon, o sangue indígena continua correndo na Nicarágua, sobre o estado e sobre toda a estrutura sistêmica que aniquila a diferença e a autonomia dos povos. 

Assassinato e lesão grave de uma família Mayangna no território Mayangna Sauni Bu

No dia 14 de março, aproximadamente às dez horas da noite na comunidade de Ahsawas, Território Mayangna Sauni Bu, a casa do irmão Mayangna Pedro Lopez Silva foi invadida de forma violenta, agressiva e temerária por uma gangue liderada pelo invasor Daniel Evener Chavarria, de origem desconhecida. Sem razão, Jader Lopez Vanegas, de 19 anos, foi brutalmente assassinado com uma espingarda e três mulheres ficaram gravemente feridas, incluindo a mãe do falecido, a senhora Aquilina Vanegas e suas filhas, Isnora Leman Vanegas, de 20 anos e Jakelin Lopez Vanegas, de 24 anos, que ainda hoje estão sendo tratadas no Hospital de Jinotega. É importante mencionar que as vítimas já haviam recebido ameaças de morte pela mesma situação relacionada com a invasão sistemática e a usurpação de patrimônio e propiedades comunais. 

Afirma-se que naquele dia, na sede do Território Mayangna Sauni Bu, estava presente o Sr. Eloy Frank, que ocupa o cargo de Presidente da Nação Mayangna. Ele estava acompanhado por policiais a quem ele pediu para documentar e investigar os fatos do crime. Para fins da investigação policial e da captura do assassino, Eloy Frank prometeu que ele mesmo zelaria para que fosse feita justiça para que esta violência e crime não ficassem impunes. As e os membros da comunidade e as autoridades comunitárias estão acompanhando as promessas do presidente da Nação Mayangna para garantir que a justiça seja feita, mas até agora não tem sido possível ouvir os gritos de justiça das comunidades. A preocupação das e dos membros da comunidade é que tem havido tantos assassinatos e perda de vidas de muitas pessoas devido à sua resistência à invasão contínua de suas terras comunitárias, e cujos crimes permanecem absolutamente impunes. 

O cancelamento do CEJUDHCAN, do FADCANIC e de 23 outras organizações 

 

Em 17 de março, mais uma vez, o governo nicaraguense decretou o cancelamento e fechamento de ONGs, fundações e associações do país que atuavam na defesa dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, da defesa da autonomia dos territórios indígenas e afrodescendentes, de projetos ligados à luta contra a violência de gênero, entre outros (2). 

Duas organizações de longa data na costa do Caribe foram impactadas nesta represália pelo regime Ortega-Murillo: o Centro de Justiça e Direitos Humanos da Costa Atlântica da Nicarágua (CEJUDHCAN) e a Fundação para a Autonomia e Desenvolvimento da Costa Atlântica da Nicarágua (FADCANIC).

CEJUDHCAN (3) é um centro que se destacou por gerar articulações com diferentes comunidades indígenas e afrodescendentes no Caribe, por defender estes direitos e por validar o processo legal do saneamiento das terras indígenas e sua legalização. No contexto do Caribe nicaragüense, saneamiento significa a remoção de populações não-indígenas de terras demarcadas e denominadas ancestrais nas Regiões Autônomas. Esta organização contribuiu para o fortalecimento da governança indígena no Caribe, a socialização de leis sobre os direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, e ações específicas para reduzir a discriminação contra a mulher, propondo a liderança feminina em órgãos comunitários e territoriais. 

A presidenta de CEJUDHCAN, Lottie Cunningham Wren do Povo Miskitu, recebeu o prêmio Right Livelihood 2020, também conhecido como Prêmio Nobel Alternativo, por sua luta em defesa dos direitos dos povos indígenas na Nicarágua. Lottie Cunningham tem recebido inúmeras ameaças de morte em sua luta pela defesa dos povos indígenas. Hoje, mais uma vez sua obra individual e coletiva é ameaçada pelo Estado nicaraguense ao cancelar a fundação à qual ela pertence. 

Fonte: CEJUDHCAN

Lottie Cunningham em atividades do Centro pela Justiça e Direitos Humanos da Costa Atlântica da Nicarágua. Fonte: CEJUDHCAN

No caso do FADCANIC (4), esta organização se destacou por iniciar o que é hoje a Universidade URACCAN (Universidade das Regiões Autônomas da Costa do Caribe), uma universidade comunitária e intercultural. Esta fundação também desenvolveu projetos para a reprodução de espécies em cativeiro e em perigo de extinção, a criação da Feira Camponesa da Costa Caribe, a criação do Centro de Educação Técnica, Ambiental e Agroflorestal (CETAA) na Reserva Natural de Wawashang, entre outros projetos de grande relevância para o Caribe nicaragüense. 

Outras organizações canceladas pelo regime Ortega-Murillo incluem as seguintes:

Associação Civil Coletivo de Mulheres 8 de Março

Associação Foro de Mulheres da Nicarágua (Asociación Foro de Mujeres de Nicaragua)

Associação Centro para a Prevenção da Violência

Associação de Mulheres Trabalhadoras e Desempregadas María Elena Cuadra

Fundação para a Promoção e Desenvolvimento da Mulher e das Crianças Blanca Arauz (Fundación para la Promoción y Desarrollo de las Mujeres y la Niñez Blanca Arauz)

Associação Nicaraguense de Direitos Humanos (ANPDH)

Coletivo de Mulheres de Matagalpa

Associação de Mulheres de Jalapa contra a Violência (Oyanka-Jalapa)

Fundação do Rio (Fundación del Rio)

Entre outras.

A lista de coletivos, associações e fundações se estende a mais de 93 lugares que foram cancelados pelo Estado, assim como o fechamento de 14 universidades. A perseguição aos movimentos de mulheres, coletivos feministas e defensores/defensoras dos direitos dos povos indígenas e afro-nicaraguenses é evidente. A Nicarágua é um caso representativo e alarmante, na região e no mundo, da brutalidade exercida por todo um sistema que opera para aniquilar mundos, vidas, dissidência e diversidade. Este sistema/estado, que obedece à razão ocidental, não permite a pluralidade. Na Nicarágua, ela pode ser vista através de um governo sandinista que se recusa com força a reconhecer sua condição colonizada, machista, ocidental e capitalista, enquanto persegue e desmantela furiosamente os outros e as outras, movimentos comunitários que se reproduzem em todo o país. Em nome de sua razão, ele oprime e destrói, mas não aniquila, mesmo que tente, movimentos de resistência que vêm de outros tempos e de outros mundos. 

Referencias

(1) Art. 4. Lei sobre o Regime de Propriedade Comunal dos Povos Indígenas e Comunidades Étnicas das Regiões Autônomas da Costa Atlântica da Nicarágua e dos Rios Bocay, Coco, Índio e Maíz.

(2) Costa Caribe: Impacto del cierre de FADCANIC y CEJUDHCAN – La Costeñísima – Bluefields, Nicaragua (lacostenisima.com)

(3) https://cejudhcan.wixsite.com/cejudhcan/sobre-nos

(4) https://www.fadcanic.org.ni/