Por Paolo Groppo, Oficial de Desenvolvimento Territorial da FAO (R), avô do Land Portal
No início dos anos 90, mais precisamente em 1993, talvez querendo imitar o conceito do “Fim da História” promovido por Francis Fukuyama, o governo dos EUA, pensando que com a dissolução da União Soviética a questão agrária estava desaparecendo da agenda internacional, solicitou à FAO que eliminasse o Serviço de Reforma Agrária, do qual eu fazia parte.
Foram anos de domínio absoluto do pensamento neoliberal, com o Banco Mundial empenhado em promover, aos milhões e com a pressão política necessária, sua abordagem de Reforma Agrária Baseada no Mercado, que ia na direção oposta do trabalho historicamente realizado pela FAO desde a década de 1950. Por mais limitadas que fossem nossas capacidades técnicas (para não mencionar as financeiras), a FAO, com uma unidade técnica (e uma revista, que surgiu em 1963 e da qual fui editor) que mantinha o tema da “reforma agrária/reforma fundiária” no sentido definido pelas Nações Unidas, era um obstáculo a ser removido.
Nosso chefe de serviço na época era um antropólogo do Centro de Posse de Terra (LTC - sigla em inglês) da Universidade de Wisconsin (EUA), onde a criação de um banco de dados relacionado à terra havia sido experimentada, o que, por vários motivos, não funcionou, mas que serviu de lição para nós nos meses seguintes. Quando ele nos informou sobre a posição dos EUA, nos pediu que lhe apresentássemos argumentos que ele pudesse compartilhar com o Chefe de Departamento/Diretor Geral Adjunto para que o Diretor Geral pudesse rebater a solicitação.
Foi assim que propus aos meus colegas a produção de um mapa-múndi indicando os países onde a questão da terra, em vários sentidos (conflitos, disputas, reformas agrárias etc.), era importante. Usando nossos contatos e conhecimentos, conseguimos mapear cerca de cinquenta países que colorimos de vermelho no mapa silencioso que preparamos. Lembre-se de que a Internet ainda não existia. Nosso mapa, que não era exatamente científico, baseava-se nas informações que conseguimos reunir por meio de nossos contatos pessoais com universidades (como o LTC), governos, especialistas no assunto e jornais.
O mapa, por mais incompleto que fosse, causou uma certa impressão, em parte porque, além de nós, ninguém tinha informações melhores. Foi assim que nosso serviço foi mantido, perdendo o nome “reforma agrária” para se tornar “posse de terra”.
Para dar continuidade a essa iniciativa improvisada e crítica, dadas as fontes díspares, propus que começássemos a preparar “fichas” dos países, indicando as características básicas do sistema fundiário de um ponto de vista histórico, bem como quaisquer problemas, tudo isso indicando claramente as fontes utilizadas. O material básico para começar poderia ser encontrado na enorme biblioteca no porão da FAO. Para mim, era importante colocar as questões agrárias recentes em uma dinâmica histórica, já que as estruturas agrárias não são variáveis que mudam da noite para o dia, portanto, o material acumulado pela FAO ao longo das décadas foi muito útil e de fácil acesso.
Um dos problemas concretos no início da preparação das “fichas” era a necessidade de ter mão de obra disponível. Naqueles anos, a FAO ainda não tinha um programa institucional de estágio e voluntariado como o atual, mas havia certa disposição em aceitar que jovens graduados pudessem obter experiência em uma agência da ONU.
A falta de fundos nos obrigou a “apertar o cinto” para continuar, por isso decidimos chamar esse primeiro protótipo de “BELTS” (há uma expressão bem conhecida em italiano: tirare la cinghia - apertar o cinto - que significa sobreviver com poucos recursos, como foi o nosso caso, sem nenhum orçamento). As “fichas” foram então compiladas em um CD-ROM, formando uma espécie de arquivo digital, ainda não um verdadeiro banco de dados, para que pudessem ser enviadas àqueles que quisessem saber mais sobre a iniciativa. Em seguida, surgiu também a Internet, com a possibilidade, naquela época, de acessar gratuitamente os principais jornais de todos os países. Decidimos, então, dar um passo adiante e acrescentar às “fichas” organizadas por país, também uma página dedicada a conflitos ou disputas em andamento, usando as informações disponibilizadas pelos jornais.
Esses foram os meses da revolta de Chiapas, no México, que trouxe a questão do conflito pela terra para o centro do debate mundial. Naquela época, para aproveitar a onda de publicidade, chegamos a cogitar a ideia de mudar o nome da nossa proposta para “Land Conflict Database” (Banco de dados de conflitos de terra) em vez de BELTS.
Meu diretor na época gostou moderadamente da ideia, com medo de que o tema fosse visto como muito explosivo. Portanto, embora tenha me incentivado a ir em frente, ele fechou a porta para o tema do conflito. Com o diretor seguinte, conseguimos um pequeno orçamento inicial, graças ao qual propusemos à SID (Sociedade para o Desenvolvimento Internacional), uma organização bem articulada com várias agências da ONU, que colaborasse conosco no programa.
Dessa forma, conseguimos realizar um primeiro seminário internacional em Roma, convidando colegas de outras organizações que estavam enfrentando o mesmo problema que nós: reunir informações sobre o tema das estruturas fundiárias e disponibilizá-las ao público. Foi nessa ocasião que conheci uma das lendas vivas sobre o tema da terra e da reforma agrária: o velho Solon Barraclough, que na época ainda prestava consultoria para o UNRISD em Genebra. Foi um evento muito interessante, com a presença de colegas do Centro de Posse de Terra, do FIDA, do UNRISD e de outros especialistas de universidades alemãs e francesas.
Para construir esse arquivo/base de dados, havia duas questões centrais: (i) onde encontrar informações e dados sobre as realidades agrícolas de diferentes países de forma contínua e (ii) como torná-los comparáveis, dadas as diferenças na coleta e formatação dos mesmos pelas várias instituições nacionais, públicas ou não governamentais. Um programa dessa magnitude teria exigido uma quantidade considerável de recursos, que nenhuma das instituições presentes na reunião poderia disponibilizar. Propus, então, transformar esse obstáculo em uma oportunidade: se ninguém pode fazer esse arquivo/base de dados sozinho, então vamos construí-lo juntos. Em uma primeira etapa, compartilharíamos as informações disponíveis, tanto para as organizações presentes na reunião quanto para qualquer nova organização que quisesse participar posteriormente, e depois discutiríamos e concordaríamos coletivamente sobre como as informações e os dados seriam formatados e apresentados, bem como sobre a futura “governança” do BELTS.
Essa proposta foi muito apreciada precisamente por causa de sua abertura, modéstia e disposição para começar de baixo para cima, de forma colaborativa, desde o início. Infelizmente, a visão do Diretor era diametralmente oposta: segundo ele, a FAO deveria ser a única a liderar o BELTS e propor que outros(as) se juntassem na busca de informações para compartilhar, mas não na concepção e orientação.
Era claramente um beco sem saída: a FAO não tinha fundos para essa iniciativa e não havia doadores sensíveis à questão. Esperar que as instituições envolvidas compartilhassem suas informações gratuitamente, sem poder decidir sobre seu uso, era claramente impensável. Foi assim que, apesar do apreço de todos(as) os(as) participantes, o BELTS, por alguns anos, praticamente desapareceu do radar.
Era necessária uma nova mudança de direção para que se pudesse tentar um novo caminho, propondo uma colaboração com a Coalizão Internacional da Terra (ILC - sigla em inglês). A ILC (cujo nome original era: Coalizão Popular para Erradicar a Fome e a Pobreza) era uma organização híbrida, a meio caminho entre uma ONG e uma organização internacional, nascida por iniciativa de um diretor anterior da FAO, graças a seus contatos com o Banco Mundial e o FIDA. Essa ideia surgiu no auge da proposta do Banco Mundial de reformas agrárias assistidas/apoiadas/orientadas pelo mercado. A ILC, em suas intenções, deveria ser o braço “não governamental” de apoio a essa visão, uma vez que a nascente Via Campesina já havia se manifestado claramente contra ela.
Entre as organizações que formaram a ILC, havia algumas com “expertise” confirmada na questão da terra. Eram principalmente institutos de pesquisa, não movimentos camponeses, de modo que a ILC foi imediatamente contestada pela Via Campesina (LVC) justamente porque a ILC não podia reivindicar o título de representante dos interesses das massas camponesas. A natureza política da maioria (se não de todas) das organizações que formaram a ILC era claramente de natureza progressista, alinhada, mas não de forma acrítica, com as demandas apresentadas pela LVC. Apesar disso, até hoje, esse mal-entendido não foi desfeito, contribuindo assim para a divisão das forças progressistas que trabalham com a questão.
A utilidade de uma colaboração com a ILC estava relacionada ao reconhecimento institucional que ela poderia trazer com relação ao BELTS. O problema político em relação ao controle do BELTS surgiu em termos legais, uma vez que a FAO é responsável - sozinha - pelas informações (dados, documentos) que são publicadas em seu nome, perante os países membros. Por esse motivo, o Diretor, que se opôs à construção participativa e compartilhada do BELTS, estava tomando o partido dos setores mais conservadores da FAO, que temiam, em uma questão potencialmente sensível, que a governança compartilhada pudesse chegar ao ponto de aprovar documentos e dados invisíveis para determinados países e/ou governos.
A natureza híbrida da ILC poderia ter sido uma tela ideal para os temores de nossa gerência, que queria evitar a exposição direta da FAO sobre essas questões. Vale a pena mencionar que o conteúdo de nossas fichas já era público e seria compilado citando as respectivas fontes. Em outras palavras, não havia nada confidencial e nada que uma pessoa interessada não pudesse encontrar por conta própria com tempo disponível.
O Diretor da ILC na época estava aparentemente muito interessado na ideia, mas em vez de prosseguir com a formalização do acordo, ele decidiu que a ILC criaria seu próprio arquivo/base de dados por meio de suas organizações. Sua estratégia foi exatamente o oposto do que havíamos feito até aquele momento: ele começou buscando a aprovação do Conselho da ILC para criar um banco de dados cujo conteúdo (e parceiros) ainda não estava claro. Por ser uma estrutura mais leve, em que o peso do serviço jurídico da FAO era menor, a proposta foi aceita. Foi assim que a ILC tentou criar uma proposta alternativa à nossa.
Com a porta da ILC fechada, não foi fácil encontrar outra pessoa interessada no assunto. Por sorte, havia chegado a ocasião da ICARRD (Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural - Porto Alegre, 2006) e o novo Diretor da Divisão, muito mais aberto do que os anteriores, além de me propor que o ajudasse a dirigir a secretaria da Conferência, disponibilizou um pequeno orçamento para o nosso banco de dados que, nesse meio tempo, havíamos rebatizado de LANDTENURE.INFO. Naquela época, a ActionAid International (AAI) também estava abordando a questão da terra e, graças a alguns relacionamentos pessoais muito bons, foi possível unir forças para dar um novo impulso à iniciativa. A AAI trouxe uma nova rede de organizações e facilitou a primeira apresentação pública em 22 de fevereiro de 2006, em Bruxelas, com a presença de membros da Comissão Europeia. Mais importante ainda foi a primeira apresentação pública do LANDTENURE.INFO, que ocorreu precisamente durante o ICARRD (março de 2006), com um evento paralelo organizado em conjunto com a AAI e coordenado por Laura Meggiolaro. Esse primeiro lançamento público internacional foi seguido por outro, no mesmo ano, na reunião do Comitê de Segurança Alimentar (CFS), em 3 de novembro de 2006, na FAO.
Nos anos seguintes, enquanto o programa ILC não conseguia deslanchar, o LANDTENURE.INFO havia alcançado um importante grau de desenvolvimento, de modo que, mais uma vez, a questão da oficialização institucional voltou à discussão. Até então, por meio de artifícios técnicos, tínhamos conseguido colaborar com a AAI e com os novos parceiros sem ter que pedir autorização ao escritório jurídico da FAO. Porém, como o LANDTENURE.INFO estava pronto para ser disponibilizado ao público em geral - no site da FAO e de outras organizações -, o pedido que fizemos para que a FAO autorizasse essa iniciativa foi recebido com receio e com o consequente parecer negativo dos advogados da FAO. A hipócrita não-solução sugerida foi que as unidades técnicas interessadas poderiam participar livremente, mas a FAO como tal não poderia.
Assim, sabendo dos problemas da ILC com a ideia de seu banco de dados e aproveitando a chegada de um novo diretor à frente da organização, propus a eles a fusão dos dois programas: eles tinham a “bênção” oficial de seus órgãos de governança (onde a FAO também estava), mas não tinham o conteúdo. Nós, ao contrário, tínhamos o conteúdo, mas não tínhamos o reconhecimento institucional.
Com calma e paciência, a coisa foi acontecendo. O que faltava decidir era o local físico para abrigar a secretaria da iniciativa, que, ao reunir o ILC e o LANDTENURE.INFO, passou a se chamar seu nome atual: LAND PORTAL. Mais uma vez, a FAO disse não, enquanto as portas foram abertas pelo ILC (que, por sua vez, foi hospedado pelo FIDA). A colaboração continuou por alguns anos, com novas e importantes colaborações (como Land Matrix, Legend e outras), confirmando que a ideia inicial de um banco de dados público e co-construído estava correta.
O próximo passo foi o trabalho de Leon Verstappen que, em 2014, criou a Fundação Land Portal na Universidade de Groningen (Holanda), que deu a cobertura legal necessária.
Assim, foi criada a estrutura atual, com uma fundação sob a lei holandesa e uma secretaria espalhada pelo mundo, tudo gerenciado por um comitê de direção e dois grupos técnicos. Também foi criado um Comitê Consultivo ad-hoc, composto pela FAO, IFAD e ILC, para apoiar o desenvolvimento do LAND PORTAL.
E assim chegamos aos dias de hoje: o Land Portal é uma realidade viva e estruturada, disponibilizando uma enorme quantidade de material, informações e dados, como nenhuma outra plataforma está fazendo sobre essas questões. Também foi aberta uma página dedicada a conflitos, o que me deixou particularmente satisfeito, após os obstáculos do passado. De minha parte, registro minha satisfação pessoal com a realização de metas que, em 1993, não pareciam estar ao alcance de todas e todos.