Em 23 de setembro de 2024, um poderoso evento híbrido intitulado "Do compromisso à ação: Possibilitando o Financiamento Direto para Povos Indígenas em Iniciativas Multilaterais de Clima e Biodiversidade" foi realizado na sede da Fundação Ford, em Nova York, como parte da Semana do Clima. O evento reuniu líderes indígenas, ativistas, representantes de fundos multilaterais e especialistas em financiamento climático para tratar de uma questão crítica: Os mecanismos multilaterais, com sua extensa burocracia, podem atender à necessidade urgente de financiamento direto e adequado à finalidade dos povos indígenas na linha de frente dos desafios climáticos e de biodiversidade?
Fundos multilaterais: Uma faca de dois gumes?
Os países recorrem cada vez mais a fundos multilaterais para o clima e a biodiversidade para apoiar os ambiciosos compromissos globais de combate às mudanças climáticas e proteção da biodiversidade. Esses fundos têm o potencial de liberar muitos recursos para os povos indígenas, as comunidades locais e os povos afrodescendentes que administram e preservam as florestas primárias do mundo. No entanto, apesar das promessas, os atrasos burocráticos e os sistemas inacessíveis geralmente retardam a entrega desse financiamento tão necessário.
O evento girou em torno da questão: Esses fundos multilaterais podem evoluir e ser chamados a prestar contas para garantir que o financiamento direto e em tempo hábil chegue às comunidades mais afetadas pelas mudanças climáticas?
À medida que os governos globais pressionam por uma transição verde, que frequentemente inclui a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, as comunidades indígenas muitas vezes se encontram na linha de frente das concessões de terras para projetos de energia renovável. Isso gera preocupações sobre o futuro das terras indígenas e se os financiadores multilaterais podem adaptar suas estruturas rígidas para atender às diversas necessidades dessas comunidades.
Estudo de caso: O que torna o Diálogos da Terra um sucesso?
Vozes da linha de frente
O evento contou com conversas perspicazes entre as principais partes interessadas, começando com uma abertura sincera de Darren Walker, Presidente da Fundação Ford. Ao refletir sobre seu mandato, Walker enfatizou que o apoio aos povos indígenas e às comunidades locais foi um dos aspectos mais significativos de seus 12 anos de liderança. Ele observou que, apesar do recorde de US$ 1,4 trilhão em financiamento climático arrecadado em 2022, o valor ainda está aquém dos US$ 5,2 trilhões necessários anualmente para cumprir as metas climáticas globais até 2030. Essa lacuna é ainda mais acentuada quando se trata dos recursos que chegam às comunidades indígenas.
A urgência da mensagem de Walker foi repetida durante todo o dia. Laura Meggiolaro, diretora administrativa da Fundação Land Portal, destacou a importância de criar espaços como o Diálogos da Terra para centralizar as vozes indígenas na agenda climática. Angela Kaxuyana, líder indígena brasileira, e Maria Pia Hernandez, representante do Fundo Territorial Mesoamericano, ressaltaram as barreiras sistêmicas que impedem os fundos liderados por povos indígenas de acessar o financiamento climático multilateral. Ambas destacaram que apenas 7% do financiamento climático atualmente chega diretamente aos povos indígenas, uma estatística que ilustra a gravidade do desafio.
Kaxuyana enfatizou que, além dos recursos financeiros, o que é necessário é a confiança nos mecanismos liderados pela população indígena. Ela explicou que as comunidades indígenas vêm protegendo a biodiversidade e combatendo as mudanças climáticas há muito tempo, mas geralmente são excluídas dos processos de tomada de decisões financeiras. Para os povos indígenas, garantir o financiamento não é apenas uma questão de receber ajuda; trata-se de manter a soberania sobre seus territórios e continuar administrando ecossistemas essenciais.
Reforma dos sistemas de financiamento multilateral
Nonette Royo, Diretora Executiva do Fundo Internacional de Posse de Terra e Floresta, enfatizou a necessidade de "descolonizar" as estruturas financeiras que atualmente regem o financiamento climático. O apelo de Royo à ação concentrou-se na necessidade de parcerias genuínas em que os Povos Indígenas não sejam apenas beneficiários do financiamento, mas os tomadores de decisão que orientam onde e como os fundos são utilizados.
Esse sentimento foi compartilhado por vários(as) participantes que pediram reformas estruturais nos sistemas de financiamento multilateral. O modelo atual geralmente depende de grandes ONGs internacionais ou órgãos governamentais para canalizar os fundos, o que cria camadas de burocracia que afastam ainda mais as comunidades indígenas do processo de tomada de decisões. Um tema recorrente foi a importância de mecanismos de financiamento direto que contornem esses intermediários e forneçam aos fundos liderados por indígenas a autonomia para alocar recursos da maneira que melhor atenda às suas comunidades.
Kimaren Ole Riamit, cofundador da Parceria para a Melhoria dos Meios de Subsistência Indígena (ILEPA - sigla em inglês), refletiu sobre sua experiência com o Fundo Verde para o Clima (GCF). Embora o GCF tenha feito avanços na política, Riamit destacou que os Povos Indígenas ainda são tratados como uma reflexão tardia no financiamento climático global, muitas vezes deixados de lado por processos complexos de solicitação e obstáculos burocráticos.
O caminho a seguir: Compromissos para a ação
Vários representantes de fundos multilaterais, incluindo Stephanie Speck, do Fundo Verde para o Clima, e Asyl Undeland, do Banco Mundial, responderam aos pedidos de reforma com promessas de simplificar os processos e melhorar o acesso direto aos povos indígenas. Speck, em particular, compartilhou o novo compromisso do GCF com aprovações mais rápidas de projetos, com o objetivo de reduzir o tempo necessário para a aprovação de projetos para seis semanas e a aprovação total em nove meses.
Apesar dessas medidas promissoras, os(as) participantes permaneceram cautelosos, enfatizando a necessidade de mais do que apenas retórica. Líderes indígenas, como a Dra. Myrna Cunningham Kain, do Fundo Pawanka, pediram aos doadores que fossem além das promessas e tomassem medidas concretas para canalizar mais recursos diretamente para as comunidades indígenas. “Já estamos fazendo o trabalho”, disse a Dra. Cunningham. “Protegemos os territórios e a biodiversidade, mas, sem recursos, não podemos continuar na escala necessária.”
Além dos números: Recuperando a Soberania
Uma das conclusões mais pungentes do evento foi a discussão sobre a recuperação da soberania financeira. Embora a ideia de aumentar a porcentagem de financiamento climático para os povos indígenas tenha sido amplamente apoiada, os líderes indígenas enfatizaram que a conversa precisa ir além das porcentagens. Como disse Riamit, "não se trata apenas de nos dar uma parte do bolo; trata-se de nos deixar fazer o bolo nós mesmos".
À medida que o mundo se prepara para a próxima COP30, fica claro que o futuro do financiamento do clima e da biodiversidade dependerá da capacidade dos fundos multilaterais de se mobilizarem e cumprirem seus compromissos. Os povos indígenas, que protegem vastas extensões da biodiversidade e das florestas do mundo, devem estar no centro da ação climática, não apenas como beneficiários, mas como principais tomadores de decisão na resposta global às mudanças climáticas.
O evento híbrido na Fundação Ford foi um chamado de esclarecimento para preencher a lacuna entre o compromisso e a ação. Para os povos indígenas e seus aliados, o desafio agora é garantir que as promessas feitas em fóruns como a Semana do Clima se traduzam em mudanças tangíveis e duradouras.
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A série de webinários Diálogos da Terra está agora em seu quarto ano, tendo organizado muitas discussões virtuais bem-sucedidas, trazendo uma variedade de perspectivas para a mesa em torno da centralidade dos direitos indígenas e comunitários à terra no avanço dos esforços globais para deter a crise climática, alcançar um planeta saudável e encaminhar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. A série é uma parceria entre a Tenure Facility, a Fundação Land Portal e a Fundação Ford.