O webinário "Caminhos para os direitos consuetudinários sobre terras e florestas no Mekong" foi realizado em 2 de julho de 2024. Esse foi o segundo webinário da série ''Estado da terra na região do Mekong'', que tem como objetivo destacar o ambiente em evolução da governança fundiária nessa região dinâmica, incluindo Camboja, Laos, Mianmar e Vietnã. O webinário atraiu 240 participantes e contou com especialistas da região do Mekong. O webinário foi organizado pela Fundação Land Portal e pela Governança de Terras da Região do Mekong e se baseou nos resultados de pesquisas e atividades realizadas pelo Projeto de Governança de Terras da Região do Mekong (MRLG - sigla em inglês) e seus parceiros sobre o reconhecimento e a formalização dos direitos consuetudinários de posse nessa região.
O webinário começou com uma apresentação que destacou os principais temas de duas importantes publicações regionais: "O reconhecimento e a formalização da posse consuetudinária nas paisagens florestais da região do Mekong: Uma perspectiva polanyiana" e uma co-publicação com o Centro de Desenvolvimento e Meio Ambiente (CDE - siglaem inglês) "Estado da terra: Reconhecimento da posse consuetudinária em paisagens florestais da região do Mekong".
Natalie Campbell, conselheira regional de posse consuetudinária e gênero para a governança de terras da região de Mekong, moderou o painel, que contou com os seguintes palestrantes:
- Jean-Christophe Diepart, Pesquisador e professor, Estudos agrários na região do Mekong
- Stony Siang Awr Cung, Ponto focal para direitos consuetudinários de posse de terra e conservação da biodiversidade, Promoção de povos indígenas e natureza juntos (POINT), Mianmar
- Il Oeur, Diretor Executivo, Analyzing Development Issues Centre, Camboja
- Dr. Van Hong Ngo, Diretor, CEGORN, Vietnã
- Hongthong Sirivath, Coordenador do Programa de Terras e Meios de Subsistência, Village Focus International (VFI), Laos
A seguir, uma breve recapitulação de toda essa conversa cativante.
Primeira rodada de perguntas: A evolução e o reconhecimento da posse consuetudinária
Como a posse consuetudinária se desenvolveu no Laos ao longo do tempo e como a situação legal mudou? Como seu governo trata o reconhecimento de posse consuetudinária para as comunidades locais?
Hongthong: No Laos, desde 1975, a maioria dos(as) laocianos(as) tem usado terras tradicionais. O governo tinha uma política para aumentar o reconhecimento da posse consuetudinária por meio do processo de planejamento do uso da terra. O governo começou a ter uma política de planejamento do uso do solo em 1979 e designou o Ministério da Agricultura e Florestas pela primeira vez para pilotar o processo de uso do solo em 1993 e, em seguida, endossou diretrizes a esse respeito em 1996, que foram aprimoradas em 2009 para se tornarem o Planejamento Participativo do Uso do Solo ou PLUP. Em 2019, a lei florestal e a lei de terras revisadas reconheceram oficialmente a posse consuetudinária de terras das pessoas que vivem dentro das áreas de floresta, o que não era o caso no passado. Recentemente, a resolução do Comitê Permanente da Assembleia Nacional foi aprovada para possibilitar a emissão de títulos de terra e certificados de uso da terra para aqueles(as) que vivem dentro das áreas florestais.
Em todo o país, há 3167 vilarejos ou 1/3 do número total de vilarejos localizados dentro das áreas florestais. Até agora, todas as pessoas que viviam nesses vilarejos não tinham sua posse de terra reconhecida. Para ajudar a reconhecer a posse consuetudinária dessas pessoas, o governo do Laos, com o apoio de parceiros de desenvolvimento, está ajustando a legislação e testando o reconhecimento da posse de terra das pessoas que vivem dentro das áreas florestais. O piloto ajudará a aprimorar a política, a legislação e as diretrizes técnicas a serem implementadas em todo o país.
Como a posse consuetudinária se desenvolveu no Vietnã e como a situação legal também mudou? Você pode falar sobre a posse florestal para comunidades e os conflitos de terra?
Hong Ngo: A posse costumeira de terras e florestas no Vietnã existe há milhares de anos, desde a história do país. Isso pode ser visto em diferentes períodos de tempo. Independentemente de qualquer período, o sistema de posse tradicional tem altos e baixos, mas sempre se mantém firme, afirmando seu papel no processo de desenvolvimento do país. No contexto vietnamita, a terra e as florestas naturais são de propriedade de todo o povo, com o Estado representando o proprietário e o gerenciamento unificado. Entretanto, historicamente, as comunidades étnicas abordaram, gerenciaram e usaram esse tipo de recurso natural por muitas gerações. As regras, leis e instituições para o gerenciamento desses recursos são formadas pela comunidade, e a comunidade as reconhece e as opera em todas as atividades da vida cotidiana comunitária, que geralmente são chamadas de instituições tradicionais da comunidade. Atualmente, a propriedade comunitária de terras e florestas está oficialmente organizada na Lei Florestal de 2017 e na Lei de Terras de 2024. Conflitos fundiários estão ocorrendo em diferentes áreas do Vietnã e em áreas de minorias étnicas devido ao desenvolvimento econômico, à urbanização e ao crescimento populacional, além de lacunas entre a lei e sua aplicação e contradições entre as leis.
Qual é a tendência da posse consuetudinária em Mianmar e as implicações para os povos indígenas de lá?
Stony: Mianmar, como muitos países da ASEAN, é composta por várias comunidades indígenas, conhecidas localmente como nacionalidades étnicas, já que o termo "povos indígenas" não é oficialmente reconhecido. Cada grupo tem práticas culturais, tradições e métodos de gerenciamento de terras exclusivos. A agricultura é o principal meio de subsistência em Mianmar, o que torna a terra vital para a população, especialmente nas áreas de nacionalidades étnicas e indígenas. As práticas costumeiras de posse, que existem desde antes da colonização, desempenham um papel fundamental em seu modo de vida e na preservação de seu sustento.
O reconhecimento da posse consuetudinária é crucial em Mianmar para a identidade cultural e a preservação de espécies nativas, especialmente porque a maioria das terras agrícolas não tem o devido reconhecimento legal e proteção em áreas indígenas. Em 2016, o governo adotou a "Política Nacional de Uso da Terra" para iniciar o reconhecimento legal da posse consuetudinária por meio de uma "Nova Lei de Terras". No entanto, devido a crises políticas, essa lei ainda não foi promulgada. A falta de reconhecimento e proteção da posse consuetudinária levou à perda e ao confisco de terras para o gerenciamento de áreas protegidas, mineração e apropriação de áreas verdes pelo governo e pelas elites.
E no Camboja? Como a posse consuetudinária se desenvolveu ao longo do tempo e qual é o papel do governo e os impactos sobre o uso da terra?
II: A posse consuetudinária no Camboja envolveu historicamente a gestão comunitária dos recursos da terra, especialmente em comunidades indígenas que praticam o cultivo itinerante e outros métodos tradicionais. O reconhecimento legal da posse costumeira começou com a Lei de Terras de 2001, que reconheceu explicitamente os direitos dos Povos Indígenas (PIs) às suas terras ancestrais (artigos 23 a 28). Outros instrumentos legais, como os subdecretos sobre Silvicultura Comunitária (2003) e Áreas Protegidas Comunitárias (2007), fortaleceram esse reconhecimento. Um apoio legal adicional foi fornecido pelo subdecreto nº 83 em 2009, que delineou os procedimentos para o registro de títulos de terras comunitárias, e a Lei Florestal de 2002, que reconhece os direitos dos povos indígenas aos recursos florestais.
O financiamento climático e iniciativas como o REDD+ influenciaram a posse consuetudinária ao integrar práticas tradicionais de gestão de terras em esquemas de crédito de carbono. O aumento do investimento agrícola e as concessões econômicas de terras levaram a conflitos fundiários e ao deslocamento de comunidades indígenas, afetando sua segurança de posse. A apropriação verde e o gerenciamento de áreas protegidas para sumidouros de carbono restringiram o acesso dos povos indígenas às terras tradicionais, exigindo um equilíbrio entre os esforços de conservação e os direitos da comunidade. A interseção entre os esquemas de sumidouros de carbono e os territórios das comunidades locais exige uma integração cuidadosa da posse consuetudinária. A partir de 2024, o Camboja terá um número substancial de Áreas Protegidas Comunitárias (CPAs) e Florestas Comunitárias (CFs). De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, há 173 CPAs que cobrem uma área de 530.000 hectares em todo o país. As florestas comunitárias também são significativas, com 647 CFs estabelecidas, abrangendo cerca de 629.000 hectares.
Segunda rodada de perguntas: Desafios e soluções no reconhecimento da posse consuetudinária
Quais são os principais desafios que o Laos enfrenta ao reconhecer a posse consuetudinária? Como esses desafios estão sendo abordados e, em sua opinião, essas soluções estão tratando adequadamente esses desafios? Como as abordagens para aumentar a segurança da posse podem se tornar mais inclusivas para as comunidades locais?
Hongthong: Há alguns desafios no reconhecimento da posse consuetudinária. Em primeiro lugar, as comunidades locais, especialmente aquelas que dependem de terras consuetudinárias, não sabiam de seus direitos à terra de acordo com as leis e regulamentações. Várias partes interessadas ainda não sabem muito sobre as questões relacionadas à posse consuetudinária e, portanto, podem ter dificuldade em defender seus direitos. Os mecanismos de reparação de queixas em nível local ainda são muito fracos e precisam de muita capacitação para garantir que tenham capacidade suficiente para proteger os(as) usuários(as) da terra. Os recursos e a capacidade dos(as) funcionários(as) do governo para promover a posse consuetudinária de terras em todo o país são limitados.
Para enfrentar esses desafios, é necessário que os parceiros de desenvolvimento e as organizações internacionais ofereçam apoio. Esse apoio deve incluir a conscientização e o fornecimento de educação jurídica para as comunidades sobre seus direitos à terra, a capacitação de funcionários(as) do governo sobre o reconhecimento da posse consuetudinária e o mecanismo de reparação de queixas, além de trazer boas práticas, como as Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse (DVGT) e os Princípios para o Investimento Responsável em Sistemas Agrícolas e Alimentares (RAI - sigla em inglês).
As abordagens para aumentar a segurança da posse devem ser mais inclusivas para as comunidades locais e devem aplicar o CLPI em todo o processo. As comunidades locais que usam terras consuetudinárias precisam entender o processo, incluindo os benefícios e o impacto em seus meios de subsistência, e também estar envolvidas no processo de tomada de decisão.
Como os desafios são diferentes em Mianmar em relação às comunidades indígenas e locais? O que está sendo feito para superá-los?
Stony: A falta de propriedade sobre as terras tradicionais é um grande desafio que leva à diminuição das práticas tradicionais e à privatização das terras comunitárias. Dois fatores principais contribuem para esse problema. O primeiro é a abolição da governança indígena, em que, em 1962, o governo desmantelou o sistema de chefia étnica/indígena, uma instituição costumeira de governança, e o substituiu pela administração da aldeia sob controle do governo central. A outra é a constituição de 2008, conhecida como "Livro Verde", que declara que "todas as terras e recursos naturais são propriedades do Estado". Além disso, leis como a Lei de Terras Agrícolas, a Lei de Terras Vagas, Pousio e Virgens e a Lei de Aquisição de Terras favorecem a apropriação de terras em detrimento dos direitos consuetudinários à terra.
Esses fatores levaram à redução das práticas consuetudinárias e à privatização das terras comunitárias de acordo com a legislação. Como resultado, há menos compreensão e senso de propriedade sobre as terras tradicionais, o que afeta negativamente os esforços de conservação ambiental, a mitigação das mudanças climáticas e a conservação da biodiversidade. Portanto, em 2018, a aliança MRLG foi formada para reconhecer, proteger e promover a posse consuetudinária em Myanmar por meio de uma estrutura legal. O trabalho inclui a documentação das práticas de posse consuetudinária existentes em todo o país para a defesa baseada em evidências, a produção de estudos temáticos e a proposta de opções para o reconhecimento.
Apesar de a situação política atual tornar a defesa de políticas um desafio, a aliança continua documentando as práticas costumeiras de posse, aumentando a conscientização e revitalizando as boas práticas. O objetivo é estar preparado para o reconhecimento da posse consuetudinária quando a situação política se estabilizar.
Terceira rodada de perguntas: Desvendando exemplos bem-sucedidos
Você pode compartilhar exemplos bem-sucedidos de reconhecimento de posse consuetudinária em seu país? Quais fatores contribuíram para esse sucesso? Como esses sucessos podem ser ampliados ou replicados em outras áreas?
II: Alguns exemplos de sucesso no Camboja incluem projetos-piloto nas províncias de Ratanakiri e Mondulkiri, apoiados pela GTZ e pela Danida. Esses projetos resultaram no registro de títulos de terras comunitárias e serviram de modelo para outras comunidades. Entre os fatores que contribuíram para o sucesso estão a forte coesão da comunidade, o apoio efetivo das ONGs e o compromisso do governo com o processo. A replicação em outras áreas pode ser facilitada pelo compartilhamento de práticas recomendadas e pela adaptação de modelos bem-sucedidos aos contextos locais. É essencial garantir uma forte organização comunitária, o apoio sustentado das ONGs e a cooperação contínua do governo em diferentes áreas.
Hongthong: Podemos encontrar alguns exemplos de reconhecimento de posse costumeira no Laos. Um exemplo está na parte sul do país, onde as terras dos(as) moradores(as) estavam sendo tomadas por uma empresa concessionária. Com a solidariedade natural do vilarejo, o bom apoio das autoridades locais com as quais os(as) moradores(as) têm conexões pessoais e o apoio de ONGs, a comunidade conseguiu derrubar os planos de desenvolver uma concessão e recuperar suas terras da empresa. Em segundo lugar, o reconhecimento da posse consuetudinária foi reconhecido por meio do registro de terras comunitárias usando a ferramenta de terras chamada Modelo de Domínio de Posse Social (STDM - sigla em inglês) para comunidades em Xieng-Kouna e Louangphrabang, no norte do Laos. Com o uso dessa ferramenta STDM, as terras comunitárias foram mapeadas e vinculadas aos aspectos sociais dos(as) usuários(as). Esse exemplo mostra como o uso da tecnologia pode aprimorar o reconhecimento da posse costumeira das comunidades locais.
Quarta rodada de perguntas: Acesso a dados e informações sobre terras
Quais são as implicações da falta de acesso a informações sobre terras no Vietnã e o que isso significa para as comunidades locais?
Hong Ngo: Conflitos de terra estão ocorrendo em muitas partes do Vietnã devido ao desenvolvimento econômico, à urbanização, ao crescimento populacional e às lacunas entre a lei e sua aplicação. O governo vem encontrando várias soluções para lidar com essa situação. Na prática, várias minorias étnicas continuaram acessando terras e florestas de maneira informal e, muitas vezes, ilegal, e isso tem sido uma fonte contínua de conflitos fundiários que, em grande parte, não são relatados. Algumas comunidades não são bem informadas sobre as decisões de administração de terras tomadas pelas autoridades locais devido a razões subjetivas e ativas. Os(as) moradores(as) locais seguem as aprovações informais da comunidade e ignoram os procedimentos complexos do governo, o que afeta sua segurança de posse. Eles não entendem quais serviços governamentais estão disponíveis e como acessá-los. Se tentam seguir esses procedimentos, muitas vezes não têm a documentação adequada e a prova de ocupação, bem como a identificação do cidadão(ã) necessária para completar o reconhecimento. As terras e florestas coletivas são privatizadas por indivíduos e vendidas sem a aprovação da comunidade e sem supervisão legal. Essa é uma fonte comum de disputas que poderia ser evitada se as pessoas fossem mais bem informadas sobre seus direitos e se os serviços públicos fossem mais facilmente acessíveis.
Para superar esses desafios, a ação apoiará a implementação das prioridades governamentais existentes por meio de uma estratégia abrangente que combina a capacitação das comunidades para reivindicar seus direitos e se envolver com as autoridades locais, vinculando as autoridades locais, as agências governamentais e as minorias étnicas e fortalecendo a capacidade das autoridades locais de executar os principais programas governamentais, como a divulgação da nova Lei de Terras e dos direitos à terra para as minorias étnicas e o acesso à assistência jurídica para a resolução de conflitos fundiários.