O planeta é um organismo vivo, governado pela lógica de privatização e acúmulo. Para que seja para todos, é preciso governança policêntrica e ecológica. Das luta pela água e terra à criação de hortas comunitárias, há meios para alcançá-la.
O texto a seguir é o capítulo 4 de:O Comum entre nós — da cultura digital à democracia do século XXI
De Rodrigo Savazoni, pelas Edições SESC
Foi a imagem da terra vista do espaço que inspirou o cientista James Lovelock a desenvolver, ainda na década de 1970, a hipótese de Gaia. Uma teoria inicialmente desprezada por seus pares, mas que, ao longo dos últimos anos, se tornou mais e mais referencial – sobretudo com a constatação do aumento da temperatura global e a ideia de que passamos a viver no antropoceno (uma nova era que é consequência das transformações geológicas ocasionadas pela ação humana). Quando viu a bolota azul, encoberta de nuvens, como a respirar, Lovelock intuiu que o planeta é um organismo vivo e, com base nessa inspiração, desenvolveu uma teoria que mobiliza conhecimentos complementares de química, física, biologia e geologia. Em essência, como ele descreve em seu livro As eras de Gaia: a biografia da nossa Terra viva, a Terra – rebatizada de Gaia em referência à titã da mitologia grega – é a “maior manifestação de vida”, um sistema autorregulado que busca garantir o ambiente necessário para sua sobrevivência e, consequentemente, de todos os seres que a habitam. Nesse sistema, a “atmosfera, os oceanos, o clima e a crosta terrestre” são regulados por “causa do comportamento dos organismos vivos”. “A fronteira do planeta circunscreve então um organismo vivo, Gaia, que é um sistema composto de todos os seres vivos e de seu ambiente. Não há uma distinção clara na superfície da Terra entre matéria viva e não viva. Existe apenas uma hierarquia de intensidade, que vai do ambiente ‘material’ das rochas e da atmosfera para as células vivas.” 1
Mas o que a hipótese de Gaia tem a ver com o comum? Boa parte da literatura afirma que os bens comuns mais evidentes são aqueles que nos foram “dados” pela natureza. Ou seja, tudo que existe sobre a biota terrestre: os oceanos, os mares, os rios, as florestas, os bosques, o ar – portanto, a atmosfera –, as rochas, mas também o sangue, as células e os genes. Podemos pensar cada um desses bens – e sua específica gestão por meio de coletivos autogovernados – isoladamente. Mas por que não pensá-los como uma rede socioambiental interdependente? A vida, como diz Lovelock, é social, existe em comunidades que têm a propriedade de serem coligativas. Se entendermos essa formulação, podemos aceitar que Gaia, esse ser vivo em que vivemos, pode ser o nosso maior comum caso gerido coletivamente. Gosto sobretudo dessa compreensão porque ela nos permite aproximar o pensamento ocidental – estruturado com base na ciência – da visão cosmogônica dos indígenas sul-americanos, adeptos do bem viver, para quem o planeta é Pachamama.
Bruno Latour, em seu Jamais fomos modernos, constrói a tese de que a modernidade se inicia com a cisão entre natureza e sociedade no mundo ocidental. Uma cisão que considera a natureza como algo transcendente e a sociedade como imanente, ou seja, dimensão exclusiva onde ocorre a ação humana. No entender do filósofo, essa dupla separação foi o que abriu caminho para o processo inconsequente de destruição da natureza que temos vivenciado. Para superar esse cenário, ele propõe a afirmação de que “a natureza e a sociedade não são dois polos distintos, mas antes uma mesma produção de sociedades-naturezas, de coletivos” 2. Faço essa pequena recuperação que vulgariza a complexa teoria de Latour para defender a ideia de que o comum, como sistema socionatural, pode nos ajudar a reverter a marcha humana – cada vez mais acelerada – rumo ao abismo. Para tanto, é preciso que desconstruamos o modelo de desenvolvimento moderno, edificado sobre o extrativismo desmedido. Isso pode ser feito, inicialmente, com a denúncia do sistema capitalista em sua feição neoliberal, mas a partir daí devemos nos concentrar em buscar alternativas viáveis – garantindo que Gaia volte a nos acolher em seus braços.
Não é uma questão de preservação, mas de perseverança. Não é um problema de controle ou de progresso tecnológico, mas de autodeterminação política. É um problema, em suma, de mudar de vida, porque em outro e muito mais grave sentido, vida, só há uma. Mudar de vida – mudar de modo de vida; mudar de “sistema”. O capitalismo é um sistema político-religioso cujo princípio consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm, sempre. Outro nome desse princípio é “desenvolvimento econômico” 3.
Nesse curto ensaio publicado pela revista Sopro, Eduardo Viveiros de Castro defende como alternativa a ideia de suficiência antropológica. Formulador dos conceitos de multinaturalismo4 e perspectivismo ameríndio5, o antropólogo brasileiro afirma que a visão teológica do desenvolvimento é consequência da insaciabilidade infinita do desejo, característica do mundo ocidental que não é partilhada por outros povos. Para ele, para desarmarmos essa bomba da necessidade precisamos recorrer à ideia de suficiência, ou seja, daquilo que é estritamente necessário não só para nossa satisfação, mas também para a preservação do planeta. Nessa perspectiva, nossa meta passaria a ser a improdução, e nosso projeto coletivo de vida, a involução intensiva. Nesse contexto, a pragmática da suficiência surgiria como antídoto ao aceleracionismo, ao crescimentismo, abrindo espaço para a defesa radical do decrescimento e da redistribuição da riqueza produzida, cuja fartura atual já bastaria para nos garantir nossas necessidades vitais. Em coro com Latour, Viveiros de Castro afirma que precisamos mudar nossa ideia do “nós”, que nos exclui dos outros, ou seja, do ambiente. O que ele quer é que aprendamos com os ameríndios.
Provedora, Gaia Pachamama é crispada de comuns, que poderiam ser divididos em duas grandes categorias socioecológicas: os comunitários e os globais. A primeira categoria é formada pelas terras usadas coletivamente para o plantio, os trechos de lagos e rios cuidados para prover água, peixe e transporte das populações ribeirinhas, os pequenos bosques de onde os membros da aldeia administram a sombra das árvores e a coleta dos frutos e da lenha; já os comuns globais, de acordo com a definição proposta por Susan J. Buck em seu livro The Global Commons: An Introduction, são a atmosfera, a Antártica, os oceanos e o espaço sideral, com o espectro eletromagnético incluído. Perceber as consequências da ação individual em contexto comunitário é muito mais fácil do que em escala global, mas o interessante de tratarmos essas duas dimensões como complementares é observarmos a interdependência de nossos atos. Mais uma vez, para reforçar, e para que fique claro, vivemos em um planeta vivo, e nossas ações – qualquer uma delas – produzem consequências para tudo que existe sob a camada de ozônio. Como observa Subirats: “Não ‘temos’ um bem comum, ‘fazemos parte’ do comum, na medida em que fazemos parte de um ecossistema, de um conjunto de relações em um entorno urbano ou rural, e por isso o sujeito é parte do objeto. Os bens comuns estão inseparavelmente unidos e unem as pessoas, as comunidades e o próprio ecossistema”.6
Como escreve Elinor Ostrom no prefácio do livro de Buck, durante muitos séculos a humanidade desenvolveu formas de aferir as consequências de suas ações em contextos comunitários, mas apenas recentemente passamos a ter tecnologias que nos possibilitariam fazer o mesmo em escala global7. E isso ainda não é plenamente viável, porque falta coordenação política nesse sentido. Por outro lado, começam a surgir organizações voltadas a atuar em defesa dos comuns globais. Na Alemanha foi fundado o Mercator Research Institute on Global Commons and Climate Change para desenvolver pesquisas que possam subsidiar os tomadores de decisão, com base na ideia de que a atmosfera, as florestas e os oceanos necessitam de cooperação global para garantir seu uso sustentável. Ottmar Edenhofer, Christian Flachsland e Bernhard Lorentz,
integrantes dessa organização, escreveram para o livro The Wealth of the Commons um artigo intitulado “A atmosfera como um comum global”8, no qual afirmam que não há tempo para esperar a constituição de um governo mundial e o que temos de fazer é articular ações em nível internacional, nacional, regional e local para garantir a mitigação das mudanças climáticas.
Na mesma direção, David Bollier e Burns Weston propuseram no seu livro Green Governance “macropríncipios e políticas” para uma gestão translocal do comum que reputo extremamente válidos para nossa reflexão9. São eles:
uma governança ecológica baseada nos comuns e nos direitos, como alternativa prática ao Estado e ao mercado;
o princípio de que a Terra nos pertence a todos;
o dever estatal de prevenir os cercamentos dos recursos comuns;
os comuns de garantia pública como ferramentas de proteção dos recursos de uso comum de grande escala (acrescento: os comuns globais);
a constituição estatutária dos comuns por parte do Estado;
a limitação legal à propriedade privada para assegurar a viabilidade dos sistemas ecológicos de longo prazo, e
o direito humano de estabelecer e manter comuns ecológicos.
O desafio de pensar o planeta como um comum nos coloca diante da necessidade de construir, como defendeu a própria Ostrom, mecanismos de governança policêntrica. O que, no meu entender, só irá ocorrer com a coordenação de esforços translocais, a partir de uma nova compreensão dos direitos que incorpore todos os seres vivos (humanos e não humanos, da sociedade e da natureza, Gaia incluída). Essa é a principal tarefa da democracia do século XXI.
Água: a base da vida
Para a ativista indiana Vandana Shiva, a biosfera é o que é porque, afinal, é uma hidrosfera. A democrática água, bem comum abundante, três quartos da superfície de Gaia, se apresenta em forma de oceanos, mares, rios, lagos, aquíferos, chuva… nós, humanos, como espécie, não podemos viver sem ela.
Impossível saciar a sede sem água. Cozinhar, lavar, banhar-se. Não há agricultura sem água. Não há extrativismo sem água. Nem sequer há indústria. No Brasil, país de proporções continentais de matriz hidrelétrica, é impossível pensar em geração de energia sem água. Não há, inclusive, fabricação de computadores sem água – a Microsoft chegou até a testar, em 2016, a operação de uma nuvem de servidores no fundo do oceano10. Não à toa, para muitos dos analistas da geopolítica, a água de hoje é o petróleo de ontem. Se muitas das guerras do século XX foram para garantir o controle do ouro negro, as do XXI são para permitir o domínio da imensidão azul. E quando falo em guerra, não estou falando necessariamente de intervenções territoriais com soldados, tanques e aviões caçadores, mas da guerra em sua forma financeira, que se apresenta como privatização dos conjuntos de recursos comuns (ou CPRs).
Um caso emblemático – e considerado inaugural desse conflito contemporâneo entre comuneiros e privatistas – ocorreu na Bolívia entre janeiro e abril de 2000. Contrária à privatização do sistema municipal de gestão e fornecimento de água potável e ao aumento entre 30% e 300% das tarifas cobradas pelo consórcio Aguas del Tunari (reunindo a filial do grupo norte- americano Bechtel e Edison, a empresa espanhola Abengoa e as bolivianas Petrovich e Doria Medina), a população de Cochabamba mobilizou-se em uma revolta popular. A privatização ocorrera com base em uma lei que garantia o monopólio dos recursos hídricos ao consórcio e permitia que essas empresas cobrassem pela água que as pessoas obtinham de poços e rios, e até mesmo as que coletavam da chuva sem autorização ou licença. Ou seja, não privatizava apenas o fornecimento, mas também os pequenos sistemas autônomos que representavam 60% do abastecimento da cidade. O episódio ficou conhecido como “guerra da água” da Bolívia (ou de Cochabamba) e atingiu tamanha proporção que levou o então presidente do país, Hugo Banzer, a declarar estado de sítio no país. As imagens de um militar vestido de civil atirando contra manifestantes com um rifle e a morte do jovem Victor Hugo Daza, de 17 anos, intensificaram os protestos e a revolta popular. O fim da história é a vitória, ainda que provisória, dos comuneiros, com o governo boliviano revogando a lei de privatizações e o contrato de concessão do serviço público, que duraria quarenta anos.
Além de exemplo de defesa da água como um comum, o caso de Cochabamba nos permite aprender lições de democracia real. Toda a articulação de resistência e revolta do episódio boliviano ocorreu a partir da criação de uma organização chamada Coordenadoria para a Defesa da Água e da Vida, que reuniu irrigadores, camponeses, trabalhadores das fábricas e do setor de serviços, professores, vizinhos e participantes dos comitês de águas. Essa entidade foi formada no calor da disputa, criando uma força contrária à lei de privatização. E foi essa supraorganização que coordenou a ocupação da cidade, os bloqueios de estradas e as greves, que tinham como único objetivo expulsar a empresa monopolista criada para gerir os recursos hídricos municipais. Em um documento publicado após um seminário sobre gestão da água realizado poucos meses depois dessa esfuziante vitória contra o neoliberalismo – que foi um sopro de inspiração para ativistas do mundo todo –, a Coordenadoria afirma claramente que seu objetivo é seguir promovendo espaços de discussão sobre o comum, endossando assim que qualquer solução só é legítima se discutida e executada pela população em seu conjunto. Não aceitariam jamais a água como mercadoria.
As lutas da democracia da água contra os gigantes corporativos também se tornaram lutas contra Estados centralizados. Sem Estado centralizado, a privatização não é possível. O mercado governa por meio de Estados não democráticos, coercivos e antipovo. É por isso que a democracia da Terra, e uma de suas facetas, a democracia das águas, é ao mesmo tempo um aprofundamento da democracia e uma defesa de estruturas genuinamente democráticas. É simultaneamente um processo de reivindicar o comum e os direitos das comunidades e defender os bens comuns e os serviços públicos11.
No Brasil, temos inúmeros casos de conflitos opondo comuneiros e privatistas. Um deles ocorre há muitos anos em São Lourenço, Minas Gerais, que possui nove fontes de águas minerais com propriedades terapêuticas e medicinais. Desde o século XIX, a cidade é conhecida pela pureza das suas águas, e por isso tornou-se um ponto turístico. Em 1992, a empresa multinacional Nestlé assumiu a direção do Parque Nacional das Águas de São Lourenço e o modelo de gestão do comum foi controlado por outra lógica, que modificou totalmente a vida da cidade, o uso da água, a qualidade e a quantidade do recurso.
Reunidos em uma associação local, a Amar’Água, desde então os moradores denunciam os malfeitos da companhia suíça, que resultaram em mudança no sabor e na vazão das águas do parque. Foram encontradas irregularidades na exploração do poço Primavera, que foi aberto sem autorização e cuja água passava por um processo de desmineralização proibido pela legislação brasileira. A associação também acusa a empresa de superexploração: de acordo com o site oficial da entidade, duas das fontes já teriam secado e as restantes não possuem mais vazão espontânea, já que as captações são realizadas em escavações de 450 metros de profundidade. Ironicamente, a água que já foi medicinal chegou às manchetes dos jornais como um problema de saúde. Em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou a proibição da distribuição e comercialização de um lote da água mineral da marca São Lourenço, produzida pela Nestlé no local, por apresentar a bactéria Pseudomonas aeruginosa acima do limite estabelecido pela legislação sanitária.
O modelo de administração privada é baseado em compensação financeira da exploração dos recursos minerais, a CFEM, taxa calculada no faturamento mensal da empresa: 12% vai para a União, 23% para o governo do estado e 65% para o município. Em 2016, a cidade recebeu R$ 536 mil reais da empresa. Infelizmente, no caso brasileiro, a luta dos ativistas mineiros tem conseguido apenas mitigar alguns danos, mas não foi suficiente para reverter o processo. Em 2017, o governo de Minas Gerais também anunciou o interesse de privatizar as águas de Caxambu e Cambuquira, também do Circuito das Águas.
No seu já citado artigo, Shiva conta a história das mulheres de uma pequena aldeia no estado de Kerala, na Índia, que conseguiram fechar uma fábrica da Coca-Cola. A unidade, aberta em Plachimada em 2000, começou a extrair ilegalmente milhões de litros de água do subsolo, o que resultou em um vertiginoso esvaziamento das reservas, percebido pelas tribos e pelos fazendeiros locais. E além da extração ilegal da água, a Coca-Cola também poluiu a que sobrou nos reservatórios: em 2003, o distrito médico constatou que a água de Plachimada tinha se tornado imprópria para consumo.
Foram as mulheres que se levantaram contra esse abuso, começaram a acampar nos arredores da fábrica e se articularam internacionalmente, demonstrando que, para enfrentar as corporações, é preciso unir forças entre o local e o global. Um processo movido na Corte Suprema de Kerala resultou em uma decisão judicial ordenando o fim do roubo da água pela Coca-Cola. Na sequência, o poder público da província, pressionado pelas circunstâncias, ordenou o fechamento da planta fabril. Mais um caso emblemático de vitória das comuneiras contra o arbítrio dos mercados. Como diz a Declaração de Plachimada:
A água é a base da vida; é o dom da natureza; pertence a todos os seres vivos na Terra. A água não é propriedade privada. É um recurso comum para o sustento de todos. A água é o direito humano fundamental. Tem que ser conservada, protegida e gerenciada. É nossa obrigação fundamental prevenir a escassez e a poluição da água, e preservá-la para as próximas gerações. A água não é uma mercadoria. Devemos resistir a todas as tentativas criminosas de comercializar, privatizar e colocar a água sob o jugo de uma corporação. Somente dessa forma, podemos garantir o fundamental e inalienável direito à água aos povos de todo o mundo12.
De acordo com a ativista canadense Maude Barlow, em seu artigo para The Wealth of The Commons, “a crise global da água é o maior desafio humano e ecológico que a humanidade já enfrentou”13. No texto, ela compartilha dados realmente alarmantes, entre os quais o de que todos os dias a indústria e a agricultura despejam 2 milhões de toneladas de esgoto nas águas, mundo afora, o que corresponde ao peso somado de toda a população planetária. Também afirma que a água contaminada é a maior responsável por mortes de crianças, mais que a malária, as guerras ou a contaminação por HIV/aids. Diz que a única saída para superar essa catástrofe é o reconhecimento da água como um bem comum e propõe algumas medidas práticas, como a proteção e a restauração das bacias hidrográficas; a conservação e a proteção das fontes de água, das nascentes; a coleta da água das chuvas e tempestades; a produção local e sustentável de alimentos e leis para impedir a poluição. Trata-se de um problema de todos nós.
A ética das comunidades tradicionais
Se a banca financeira nos governa em aliança com um Estado cuja função primeva é o exercício da violência (física e simbólica) para garantir segurança ao capital; se os governos atuam cercando comuns para prover mais combustível para a caldeira dos mercados, só nos resta agir como enxame, inspirando-nos na arquitetura das redes distribuídas, com suas pontas inteligentes sem centro único de comando. Como vimos no início deste capítulo, a questão dos comuns socioambientais pode e deve ser encarada em escala planetária, por meio de arranjos geopolíticos, mas, para que tenhamos alguma chance de vencer necessitamos, como dito anteriormente, da emergência de uma cidadania translocal. Ou seja, uma cidadania que atue comunitariamente em seus territórios, que teça teias e que seja consciente de que seus atos têm impacto planetário. Mas onde encontrar inspiração para isso? Acredito que um ponto de partida é observar e aprender com as comunidades que guardam o saber viver em harmonia com a natureza e que desenvolveram tecnologias voltadas a promover uma transição em direção ao comum.
Recordo-me quando, cerca de vinte anos atrás, estive pela primeira vez na Ilha do Cardoso, em Cananeia, no litoral sul de São Paulo. Hospedei-me no Marujá, o principal núcleo habitado da ilha, onde vivem cerca de 50 famílias, algo em torno de 200 pessoas. O que me impressionou no Marujá foi o nível de organização da comunidade. A Ilha do Cardoso foi transformada em um parque nos anos 1960. Alguns moradores, aqueles que estavam nas áreas consideradas de conservação absoluta, foram expulsos de suas terras. No Marujá, eles se organizaram para permanecer. Ao longo dos anos, desenvolveram um modelo de administração comunitária próprio, estruturado a partir da cultura caiçara, portanto, baseado no cuidado com a terra e o meio ambiente. Em 1993, para fixar os pactos comunitários, desenvolveram um plano de ocupação para o território. Quatro anos depois, a administração do parque estadual propôs desenvolver um planejamento participativo e escutar os moradores. Pioneiros, entregaram aos administradores do Estado o plano que já havia sido escrito e que foi incorporado ao oficial.
Como relata Ezequiel de Oliveira, histórica liderança da comunidade do Marujá, em um depoimento para o Museu da Pessoa, a principal luta dos comunitários do Marujá sempre foi contra a especulação imobiliária. E uma forma que eles encontraram para resistir foi abrir-se ao turismo, mas de maneira inovadora. Diferentemente de outras áreas litorâneas paradisíacas que foram invadidas por forasteiros em busca de construir casas de veraneio, a comunidade do Cardoso desenvolveu um modelo de turismo de base comunitária que é considerado exemplar. Esse processo começou nos anos 1990 e foi desenvolvido a partir da aliança entre os moradores. Uma aliança que busca, até hoje, valorizar a cultura caiçara, preservar o meio ambiente, gerar renda equanimemente para a comunidade e garantir a permanência de seu modo de vida. Reproduzo aqui uma longa citação do depoimento de Seu Ezequiel, como ele é conhecido, porque me parece um exemplo eloquente do que é uma administração comunitária orientada ao comum.
[…] a maioria das casas adaptaram fizeram um quarto para aluguel e a gente posteriormente começou em 93, quando implantamos esse plano de gestão da comunidade, uma das coisas fundamentais que nós fizemos foi uma visão de distribuição de renda, de receita do turismo para a comunidade inteira, porque já que eles vão chegar, vão criar problemas para a comunidade inteira nada mais justo do que a grana ser distribuída na comunidade inteira. A gente começou a pegar as cotas das barracas e repassar para todos os moradores, criar infraestrutura sanitária mínima e levar o número X de barraca para o quintal deles como forma de distribuir renda. E quem tinha cinco quartos ou mais dentro da comunidade foi proibido de construir e a gente liberou para quem não tinha para poder construir. E isso está valendo até hoje, então foi um passo fundamental do ponto de vista da organização do turismo, da socialização do recurso e para criar um elo de unidade da comunidade.
Junto com isso a gente estipulou um grupo, um número de suporte: daí tem tantos quartos, tem tantos leitos, numerou um número X de barracas e acabou. Se você quiser ir lá na alta temporada, tem que ligar em outubro para ir … deixa eu ver outubro, novembro, dezembro… no máximo no começo de novembro para achar vaga lá para ir no réveillon, porque os caras ligam lá antes reservam, porque tem limite estabelecido e é até rígido, chega lá e não tem vai ter que voltar. Junto com isso nós implantamos uma coisa muito interessante que é uma contribuição de cada morador com o caixa da Associação para gerir a comunidade, a Prefeitura não faz nada, o Estado não faz nada. Para não perder a dinâmica de reivindicar nós também não cruzamos os braços esperando que eles fizessem, então a gente inventou, bolou essa contribuição. Daí cada barraca que está nos quintais ou donos do camping paga um real por dia e cada hóspede 50 centavos, isso vai para um caixa da comunidade para fazer coleta seletiva de lixo, agendamento, pagar o telefonista do agendamento, limpeza de trilha enfim toda atividade da comunidade14. (Destaque meu.)
Essa região sul do estado de São Paulo, onde se encontra a Ilha do Cardoso e o Vale do Ribeira, é marcada pela presença de remanescentes de quilombos, povos indígenas, mas, sobretudo, de caiçaras – um povo neotradicional formado por descendentes de índios e portugueses que habitam a costa litorânea do sudeste e do sul do Brasil. Culturalmente os caiçaras são, em essência, comuneiros. Na agricultura, por exemplo, sempre trataram a terra como bem coletivo, constituindo os roçados por meio da coivara (a queima para limpeza dos terrenos); plantando em mutirão ou puxirão (dinâmica de trabalho coletivo) e colhendo os frutos com a música e dança do fandango. Esse mesmo raciocínio se aplica ao mar, considerado um conjunto de recursos comuns, de onde os caiçaras extraem por meio da pesca seu principal sustento. Atualmente, também praticam o manejo sustentável de ostras e mexilhões. Na comunidade do Marujá, como vimos, ampliaram essa visão coletivista para a gestão comunal dos recursos gerados pelo turismo. Trata-se de uma cultura transmitida pela prática, de geração para geração, pondo a mão na massa na roça, na pesca, na produção do artesanato ou na partilha das propriedades medicinais das ervas e plantas.
Sem dúvida, os caiçaras têm muito a nos ensinar sobre arranjos produtivos locais que criam modos de vida sustentáveis.
“E eu sempre falo, nas minhas conversas, que o cerne do ser humano é o grau de satisfação de onde se vive. Então você pode estar muito satisfeito com pouca coisa, ou não estar satisfeito com um monte de coisa e sempre correndo atrás do novo, do que está na moda.” Com base nessa declaração de Seu Ezequiel, podemos dizer que ele é um adepto prático da antropologia da suficiência defendida por Viveiros de Castro. Não à toa, na comunidade do Marujá há um rigoroso controle sobre o que pode ou não ser vendido e comprado, e nenhuma alteração nas terras ocorre sem anuência da assembleia comunitária. A tensão ocasionada pelas trocas constantes com os turistas e pelo acesso aos meios de comunicação (televisão e internet) é permanente. Principalmente entre os mais jovens. Afinal, a subjetividade consumista está sempre à espreita, rondando, em busca de angariar novos adeptos para o culto do capital.
Outra comunidade que gostaria de destacar, para encerrar este capítulo, é a dos horticultores urbanos, um movimento crescente nas grandes cidades do mundo e que tem sido evocado como modelo de comum por diferentes autores, como Silvia Federici ou Chris Carlsson. Aliás, Carlsson, na abertura do capítulo “Cultivadores de terrenos baldios”, de seu Nowtopia, cita um texto de Patricia Hynes segundo o qual cerca de 200 milhões de moradores das cidades do mundo são agricultores urbanos, sendo a grande maioria formada por mulheres. Esse movimento fornece alimento e renda para 700 milhões de pessoas. “Será que é tão surpreendente que as mulheres negras usem as hortas comunitárias para remendar o tecido de nossos bairros mais pobres?”, pergunta-se Hynes15. Não, não é. Porque, afinal, nas hortas comunitárias cultivam-se alimentos, mas também cultivam-se pessoas. Ao plantarem legumes, verduras e ervas, sem agrotóxicos e com manejo sustentável da terra e da água, as horticultoras trabalham pela possível soberania alimentar dos habitantes do planeta.
Em 2013, Jose Luis Vivero Pol, professor da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, escreveu um artigo em que questiona o sistema industrial de produção de alimentos. De acordo com o pesquisador, a lógica privada da alimentação, que maximiza o lucro, e não a nutrição e os benefícios à saúde humana, falhou na sua tarefa mais básica: alimentar as pessoas de maneira sustentável evitando, por um lado, a desnutrição e a fome e, por outro, o sobrepeso e a obesidade. De acordo com dados por ele citados, 2,3 bilhões de pessoas, um terço do planeta, ou passa fome (668 milhões segundo a FAO-ONU em 2012) ou está acima do peso (1,4 bilhão, sendo 500 milhões de obesos). Apesar dessa profunda crise alimentar e dos esforços das organizações internacionais para combatê-la, não se contesta estruturalmente o modelo da comida como um bem privado, ao qual só se tem acesso comprando nos mercados ou produzindo você mesmo em regime privativo.
A reversão desse cenário só será possível afirmando a alimentação como um bem comum. Vivero Pol não tem esperança de uma transformação radical em pouco tempo, mas acredita que, ao menos, devemos começar a promover as mudanças de modo gradativo. E para isso propõe que os ativistas sociais atuem a partir de uma perspectiva múltipla do problema, reconhecendo: (a) a alimentação como uma necessidade humana básica, ou seja, um direito que deve ser garantido a todos os cidadãos; (b) a comida como um pilar da nossa cultura como produtores e consumidores; (c) a comida como um produto negociável com base em comércio justo e produção sustentável; (d) a comida como um bem comum que deve ser partilhado pela humanidade. No entender do pesquisador, essa visão estabelece um contraponto à concepção majoritária que vê os alimentos exclusivamente como mercadoria.
De uma perspectiva humana, os bens comuns são bens essenciais para a sobrevivência de todos e de cada ser humano, e os alimentos, a água e o ar se ajustam perfeitamente a essa definição. Ar, comida e água estão distribuídos pela Terra e são facilmente acessáveis. Os três são limitados, assim como a Terra é finita, mas também são recursos renováveis produzidos pela natureza em um processo cíclico. Alimentos e água costumavam estar livremente à disposição até a domesticação das plantas e animais, quando a propriedade privada começou a existir. Como são elementos-chave para a nossa sobrevivência, podem ser considerados como direitos humanos fundamentais, intimamente ligados ao mais importante de todos: o direito à vida. Nesse sentido, devem ser garantidos para todos e cada um16.
Há bons exemplos de organizações que realizam projetos para promover a alimentação como um bem comum. A Common Good Food, da Escócia, trabalha apoiando comunidades para que assumam o controle total de sua alimentação. Compartilhando conhecimentos e recursos, celebram a cultura da boa alimentação com o objetivo de que as pessoas deixem de ser apenas consumidoras e tornem-se capazes de plantar sua própria comida e geri-la como um bem comum. Em 2016, em parceria com outras organizações, realizaram o Farm Hack Scotland, um festival de inovação cidadã que reuniu pequenos produtores e fazendeiros para desenvolver ferramentas de pequena escala para cultivo sustentável. Todos os projetos utilizaram licenças livres e tiveram sua documentação compartilhada gratuitamente na internet. Outro exemplo é a The Food Common dos Estados Unidos, cujo trabalho é baseado em três pilares: (1) o incentivo à pequena e média agricultura familiar; (2) o reestabelecimento de uma economia local para a alimentação; (3) a busca de outros modelos econômicos de produzir, distribuir e vender alimentos. Em 2012, passaram a desenvolver um protótipo na cidade de Fresno, Califórnia. Ali remodelaram um antigo restaurante para funcionar como uma central de distribuição da produção da agricultura orgânica familiar para restaurantes e pessoas. De um lado, facilitam o acesso aos produtos aos chefes de cozinha, aos distribuidores e às instituições públicas e privadas e, de outro, entregam produtos frescos e orgânicos nas residências. Experiências semelhantes a essa estão ocorrendo na maior parte das cidades do mundo, inclusive nas regiões mais pobres, onde o provimento de comida se soma à reconstrução do tecido social. Silvia Federici destaca que as hortas comunitárias urbanas abriram caminho para a rurbanização, que ela considera “um processo indispensável se quisermos manter o controle sobre nossa produção alimentar, regenerar o meio ambiente e produzir para nossa sobrevivência”17.
1 – James Lovelock, As eras de Gaia: a biografia da nossa Terra viva, Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 36.
2 – Bruno Latour, Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro: Editora 34, 2009, p. 138.
3 – Eduardo Viveiros de Castro, “Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva”, Sopro, n. 51, mai. 2011. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/suficiencia.html, acesso em: 20 abr. 2018.
4 – “Esse reembaralhamento das cartas conceituais levou-me a sugerir a expressão ‘multinaturalismo’ para designar um dos traços contrastativos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias ‘multiculturalistas’ modernas: enquanto estas se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas – a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e dos significados –, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A ‘cultura’ ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a natureza ou o objeto, a forma do particular.” Idem, Metafísicas canibais, São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 43.
5 – “Vendo-nos como não humanos, é a si mesmos – a seus respectivos congêneres – que os animais e espíritos veem como humanos: eles se percebem como (ou se tornam) entes antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob uma aparência cultural – veem seu alimento como alimento humano (os jaguares veem o sangue como cerveja de milho, os urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas (como chefes, xamãs, festas, ritos…).” Ibidem, pp. 44-5.
6 – “No ‘tenemos’ un bien común, ‘formamos parte’ de lo común, en la medida que formamos parte de un ecosistema, de un conjunto de relaciones en un entorno urbano o rural, y por tanto el sujeto forma parte del objeto. Los bienes comunes están inseparablemente unidos y unen a las personas, las comunidades y al propio ecosistema.” Joan Subirats, “Algunos apuntes sobre la relación entre los bienes comunes y la economía social y solidaria”, Otra Economía, v. 5, n. 9, pp. 195-204, jul.-dez. 2011.
7 – Cf. Susan Buck, The Global Commons: An Introduction, Washington, D.C.; Covelo, Cal.: Island Press, 1998.
8 – Cf. Ottmar Edenhofer; Christian Flachsland; Bernhard Lorentz, “The Atmosphere as a Global Commons”, in: David Bollier; Silke Helfrich (orgs.), The Wealth of the Commons: A World beyond Market & State, Amherst, MA: Levellers Press, 2012. Disponível em: http://wealthofthecommons.org/essay/atmosphere-global-commons, acesso em: 20 abr. 2018.
9 – David Bollier; Burns Weston, Green Governance: Ecological Survival, Human Rights, and the Law of the Commons, Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
10 – Cf. Julian Spector, “Why data farms are heading underwater”, Citylab, 2 fev. 2016. Disponível em: https://www.citylab.com/life/2016/02/microsoft-cloud-ocean-project-natic..., acesso em: 20 abr. 2018.
11 – “Struggles of water democracy against corporate giants thus also became struggles against centralizing states. Without centralized state control, privatization is not possible. The market rules through coercive, anti-people, undemocratic states. That is why Earth Democracy, and one of its facets, water democracy, is simultaneously a deepening of democracy and a defense of genuinely democratic structures. It is simultaneously a process of reclaiming the commons and community rights and defending common public goods and public services.” Vandana Shiva, “Resisting Water Privatisation, Building Water Democracy”, World Water Forum, Cidade do México, mar. 2006, p. 2. Disponível em: <http://www.globalternative.org/downloads/shiva-water.pdf>, acesso em: 20 abr. 2018.
12 – Cf. Vandana Shiva, op. cit., p. 5.
13 – “The global water crisis is the greatest ecological and human threat humanity has ever faced.” Maude Barlow, “Water as a Commons: Only Fundamental Change Can Save Us”, in: David Bollier; Silke Helfrich (orgs.), op. cit. Disponível em: <http://wealthofthecommons.org/essay/water-commons-only- fundamental-change-can-save-us>, acesso em: 20 abr. 2018.
14 – Depoimento de Ezequiel de Oliveira ao Museu da Pessoa. Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/pessoa/ezequiel-de-oliveira-24375>, acesso em: 19 mar. 2018.
15 – Chris Carlsson, Nowtopia: iniciativas que estão construindo o futuro hoje, Porto Alegre: Tomo Editorial, 2014, p. 109.
16 – “From a human perspective, the commons are those goods essential for the survival of each and every human being and food, water and air perfectly fit that definition. Air, food and water are widespread on Earth and easily available. The three essentials are limited, as Earth is finite, but renewable resources and they are produced by nature in a cyclical process. Food and water used to be freely available until the domestication of crops and livestock, when property rights began to be established. As they are key elements for our survival they can be considered as fundamental human rights, closely linked to the most fundamental one: the right to life. In that sense, they should be guaranteed to each and every one.” Jose Luis Vivero Pol, “Food as a Commons: Reframing the Narrative of the Food System”, 23 abr. 2013. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2255447, acesso em: 20 abr. 2018.
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17 – Silvia Federici, op. cit., p. 149.