Aller au contenu principal

page search

News & Events Racismo e classismo, uma ferida que sangra nos protestos na Colômbia
Racismo e classismo, uma ferida que sangra nos protestos na Colômbia
Racismo e classismo, uma ferida que sangra nos protestos na Colômbia
LUIS ROBAYO / AFP
LUIS ROBAYO / AFP
Indígenas colombianos a bordo de um ônibus ‘chiva’ passam diante de uma tropa militar nos arredores de Cali, na quarta-feira. Em vídeo, a participação dos indígenas nas manifestações.LUIS ROBAYO / AFP


 


Por Sally Palomino


 


O confronto entre homens armados e grupos indígenas em Cali colocou em cena uma violência histórica que o país ainda não leva em consideração


 


Existe uma ferida aberta na Colômbia da qual pouco se fala. Embora a faísca que desencadeou os protestos em 28 de abril foi uma reforma tributária, com o passar dos dias outras reivindicações foram sendo acrescentadas. Nenhuma nova. Por isso o surpreendente não é que agora haja uma agitação social, o estranho é que não tivesse acontecido antes. “Existe uma ferida aberta sangrando que está falando, que reclama por séculos de negação e exclusão. Reconhecer as diferentes formas de racismo é uma das agendas represadas deste país”, diz do outro lado da linha Oscar Almario García, historiador e professor da Universidade Nacional da Colômbia.


 


Em Cali, onde se contam mais mortos desde o início dos protestos, no domingo foram vistas imagens que ―diz o professor Almario García― colocam em cena a encruzilhada entre a Colômbia excluída e aquela que não viveu sob a indiferença do Estado. A presença de uma minga indígena que há dias bloqueia ruas e estradas e pede que os escutem encontrou-se com uma parte da sociedade que sente que se sua situação está em risco, está disposta a matar. Os indígenas se aproximaram de um dos bairros ricos da cidade e ali responderam-lhes com tiros. Pelo menos nove indígenas ficaram feridos. Almario García, que escreveu um livro sobre a configuração moderna do Vale do Cauca, região onde fica Cali e onde ele nasceu, diz que o que aconteceu ali foi “uma bomba que estava para explodir”.


Alguns meios de comunicação nacionais afirmaram que se tratou de um confronto entre cidadãos e indígenas. O diretor do Partido Conservador, Omar Yepes Alzate, disse que os indígenas saíram de seu “habitat natural” e perturbavam a vida dos cidadãos. “Não é difícil entender por que a luta dos indígenas para prevalecer contra os poderes estabelecidos é uma luta que acontece há 200 anos, são 200 anos de resistência do povo indígena e afro”, diz Almario García.


Mauricio Archila, também historiador e professor universitário, escritor e analista do Centro de Pesquisa e Educação Popular (Cinep), afirma que durante esses protestos vieram à tona, como nunca antes, problemas estruturais que afetam historicamente a convivência entre os colombianos. Existe uma distância entre o Estado e os movimentos étnicos que se reflete no que acontece nas ruas. “De nossas raízes históricas, desde a colônia, os indígenas foram desprezados, a igreja se impôs, uma língua se impôs”, explica Archila, que também alerta que os protestos na Colômbia são marcados pelo classismo. Basta olhar para os mortos deixados pela repressão policial nessas manifestações, a maioria são jovens pobres ou de classe média. São chamados de vândalos.


“Não conseguimos nos desprender em todos os âmbitos desse projeto de nação racista. Sabemos enaltecer a diversidade de várias maneiras, mas não foi suficiente”, comenta Felipe Arias Escobar, historiador e jornalista. “Existe um isolamento político, físico e cultural com os indígenas. Nós os entendemos como algo homogêneo, temos a ideia de que são personagens ―nem sequer pessoas― imutáveis. Tem gente que acha insólito que usem o celular ou andem de moto”. O que aconteceu em Cali no domingo ―afirma Arias Escobar― é reflexo de um racismo que, apesar da Constituição de 1991, que criou políticas públicas para essas populações, se mantém. “Somos filhos de uma nação racista que se nutre da exclusão”, enfatiza.


Myriam Jimeno, antropóloga e escritora, diz que o que aconteceu em Cali e durante estes dias de protesto expôs problemas profundos que a vida cotidiana não permite ver. “A Colômbia tem pelo menos dois milhões de indígenas, 104 povos espalhados por toda a geografia nacional que, quando se manifestam e exigem o que lhes corresponde, geram mal-estar”, aponta Jimeno, que lembra que uma de suas reivindicações recentes é a promoção de programas de substituição de cultivos ilícitos. No Vale do Cauca, onde vivem pouco mais de 300.000 indígenas ―diz― há um conflito pela terra que, mesmo com a saída das FARC do cenário da guerra, continua custando-lhes a vida.


ERNESTO GUZMÁN JR. / EFE


Indígena realiza um ritual junto às autoridades que tentam dispersar os manifestantes em Cali, no dia 28 de abril. Em vídeo, uma performance contra a violência. ERNESTO GUZMÁN JR. / EFE


Segundo a ONG Indepaz, 269 lideranças indígenas foram assassinadas desde 2016, 167 durante a presidência de Iván Duque (com dados até junho de 2020). Há ao menos 39 povos indígenas à beira do extermínio.


O Estado pouco fez para investigar essas mortes e romper as barreiras que levaram à exclusão porque não considera isso um problema, destaca a antropóloga, que afirma que a sociedade colombiana foi segregada a partir das instituições. “O racismo e o classismo se misturam. Expressões usadas em relação aos manifestantes como ‘ignorantes’ ou ‘preguiçosos’ não buscam apenas assinalar diferenças, mas também colocar quem as diz em um nível de superioridade em um país com uma sociedade altamente hierarquizada, marcada por estratos que dividem a população desde o espaço físico. Os bairros ricos não conhecem os pobres. Na educação também há estratificação: o que é público, em geral, é para os pobres”, aponta Jimeno, que diz que quando há hábitos sociais tão segregados como acontece no país se abre uma brecha à qual se responde com violência quando se começa a fechar. “É uma violência carregada de medo de que o outro se aproxime, entre em contato, toque o que é meu”, explica.


Nubia Ruiz, socióloga e professora da Universidade Nacional, diz que “em momentos de crise como o que estamos vivendo, as elites tentam manter suas condições a ferro e fogo”. “Sentem seus interesses econômicos ameaçados quando os indígenas reclamam seus territórios e à agressão verbal e simbólica se soma a agressão física”, afirma.


Durante décadas parecia que a única urgência no país era resolver o conflito com as FARC. Agora que a guerrilha é um ator secundário, as feridas profundas que a Colômbia tem ficaram expostas. Para Alejandro Cortés-Arbeláez, cientista político e professor da Universidade del Bosque, o que a Colômbia está vivendo é um golpe de realidade que nem todos previram. “Somos um país pouco democrático se pensarmos na democracia para além das eleições. A tomada de decisões continua sendo vista de cima. Uma prova é o que está acontecendo com alguns intelectuais e políticos, que foram pegos de surpresa pelo que está acontecendo”, diz.


As manifestações continuam nas ruas da Colômbia, revelando feridas profundas com a urgência de serem atendidas.


 


Esta matéria foi originalmente publicada em El País.