Este blogue faz parte da série O Que Ler.
Os projetos de carbono florestal na África são verdes, mas maldosos? Acho que este artigo com um título atraente levanta uma questão justa que também se estende a outras regiões do mundo e países que participam do mercado de carbono. É certo que nem todos os projetos de carbono são verdes. Há evidências de que vários projetos de carbono não reduzem as emissões ou promovem plantações de monocultura. Dito isso, nos últimos tempos, cada vez mais países estão avançando com regulamentações de estrutura de carbono sem levar em conta as complexidades dos direitos à terra e aos recursos. Isso é particularmente problemático. A legislação nacional desempenha um papel fundamental, uma vez que a maioria das estruturas globais de carbono submete as empresas às leis e políticas nacionais. Diante desse cenário, quero chamar a atenção para o nexo pouco explorado da posse da terra nas estruturas de carbono e seu impacto sobre a justiça do carbono neste compêndio.
Após a finalização do Artigo 6 do Acordo de Paris sobre Mecanismos de Crédito na COP29 em 2024, a Grassroot Justice Network (Rede de Justiça de Base), a ILC (Coalizão Internacional da Terra) e a RRI (Iniciativa Direitos e Recursos) publicaram uma visão geral útil sobre por que os direitos à terra são importantes para os mercados de carbono. Em uma linha semelhante, uma publicação da Global Land Alliance (Aliança Global pela Terra ) descreve as principais considerações e ações para garantir os direitos à terra dos Povos Indígenas e das comunidades locais no mercado voluntário de carbono. Apesar de sua importância para a justiça do carbono, as publicações sobre direitos de posse no contexto do desenvolvimento de legislação nacional que regula os mercados de carbono são surpreendentemente poucas. Explorando essa lacuna, o Land Portal, juntamente com a ALIGN e a Namati, organizou o webinário “Land Tenure and National Carbon Frameworks” (Posse da terra e estruturas nacionais de carbono) em 27 de março de 2025.
No entanto, o debate sobre os direitos à terra e a mitigação das mudanças climáticas não é novo. A segurança da posse, a reforma dos direitos fundiários e os desafios relacionados têm sido amplamente discutidos no contexto dos projetos de REDD+. Enquadrada como a questão da propriedade de recursos na gestão climática e nas transições verdes, os(as) estudiosos(as) argumentam que quem lucra com os ganhos financeiros dos projetos florestais de carbono depende da propriedade da terra. Um dos problemas é que as florestas muitas vezes não são registradas em nome dos Povos Indígenas ou das comunidades locais, mas são consideradas terras públicas de propriedade do Estado. Dessa forma, os direitos de propriedade existentes não refletem quem está usando a terra nem o significado socialmente construído sobre a mesma, as florestas e seus recursos. Além disso, muitos Povos Indígenas e comunidades locais dependentes da floresta têm recursos financeiros ou acesso para solicitar títulos formais de terra limitados.
Os desafios para garantir os direitos à terra em projetos de carbono são muitos. Ao mesmo tempo, o sucesso dos mercados de carbono depende da participação dos Povos Indígenas e das comunidades locais que, muitas vezes, são os(as) guardiões(ãs) das florestas, áreas úmidas e pastagens que armazenam o carbono. Gosto da forma como Eileen Wakesho reflete sobre a nova abordagem no norte do Quênia, que prioriza e centraliza os direitos da comunidade, na esperança de que isso possa servir de exemplo para os(as) demais. Em contraste com os negócios de sempre, gostaria de acrescentar que também existem ideias não mercadológicas, além das compensações, que oferecem oportunidades alternativas para unir os direitos à terra e a biosequestração.
Aproveitando a oportunidade, quero apresentar quatro publicações oportunas que enfocam os direitos à terra e as estruturas regulatórias nacionais de carbono, incluindo um conjunto de ferramentas políticas, dois resumos e um conjunto de introduções. A primeira publicação fornece um guia abrangente para incorporar a justiça do carbono na legislação nacional, oferecendo bases teóricas e ferramentas pragmáticas para a elaboração eficaz de políticas. Em segundo lugar, o relatório do IIED (Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento) oferece uma perspectiva pouco explorada para o debate, chamando a atenção para os possíveis problemas jurídicos e políticos que os governos podem enfrentar ao conceder direitos sobre o carbono. A terceira publicação, um resumo de políticas, analisa a situação dos direitos de carbono para os Povos Indígenas, comunidades locais e Povos Afrodescendentes em 33 países da África, Ásia e América Latina. A última publicação encerra com breves explicações sobre mercados de carbono, créditos, vínculos com direitos e questões relacionadas que podem ajudar e fortalecer os Povos Indígenas e as comunidades nos processos de elaboração de legislação.
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Publicações analisadas nesta edição:
- Como a legislação nacional pode promover a justiça do carbono: Um kit de ferramentas para políticas
- Lidando com as complexidades dos direitos de carbono
- Situação dos direitos de carbono dos Povos Indígenas, das comunidades locais e dos Povos Afrodescendentes em terras e florestas tropicais e subtropicais
- Mercados de Carbono, Florestas e Direitos: Uma Série Introdutória
Como a legislação nacional pode promover a justiça do carbono: Um kit de ferramentas para políticas
Por Namati e Grassroots Justice Network, 2025
A Namati, a Grassroot Justice Network (Rede de Justiça de Base) e vários(as) parceiros locais elaboraram um guia abrangente sobre como as políticas e a legislação nacionais podem ser projetadas para garantir a justiça do carbono nos esquemas de comércio e compensação de carbono. Esse guia enfatiza a importância de proteger os direitos da comunidade e garantir a participação justa, bem como o compartilhamento equitativo de benefícios nos mercados de carbono em rápida expansão. O kit de ferramentas foi desenvolvido por meio de amplas consultas, oficinas e discussões em mesas redondas com especialistas de diversas origens. De modo geral, considero o kit de ferramentas um recurso prático para formuladores de políticas, defensores(as) e líderes comunitários. Seu objetivo é orientar a criação de leis que não apenas abordem as mudanças climáticas reduzindo as emissões de carbono, mas também promovam a justiça, protejam os direitos e garantam que os benefícios da transição verde sejam compartilhados de forma equitativa. Defensores(as) e formuladores(as) de políticas podem usar esse kit de ferramentas para pressionar por melhores leis que se alinhem aos princípios de justiça de carbono. Inicialmente, o kit de ferramentas define os princípios de justiça do carbono, incluindo FPIC (Consentimento Livre, Prévio e Informado), participação justa ou compensação justa, e descreve as lacunas comuns nas políticas nacionais. Com base em estudos de caso do Quênia, Costa Rica, Filipinas e Libéria, as autoras e autores mostram como esses princípios podem ser ou são integrados à legislação nacional. Identificam as principais partes interessadas no contexto das políticas nacionais de carbono e explicam a influência dos acordos internacionais, como o Artigo 6 do Acordo de Paris, na legislação nacional. O kit de ferramentas também oferece uma função para avaliar se as políticas nacionais existentes ou projetadas estão alinhadas com os princípios de justiça de carbono. Sem dúvida, o kit de ferramentas oferece uma estrutura abrangente para a integração da justiça de carbono à legislação nacional, mas tem algumas limitações. Primeiro, ele pressupõe que os governos estejam dispostos a priorizar os direitos da comunidade, o que, na prática, muitas vezes não acontece. As autoras e autores não abordam suficientemente os desafios da corrupção, da falta de transparência e da fraca aplicação ou monitoramento em muitos países. Além disso, embora descrevam a dinâmica de poder em jogo, não levam em consideração como o lobby corporativo, as instituições financeiras internacionais e os interesses do Estado moldam os mercados de carbono e podem prejudicar as políticas voltadas para a justiça. Da mesma forma, acho que teria sido útil abordar as complexidades da implementação do FPIC (sigla em inglês) em diversos cenários políticos e jurídicos.
Lidando com as complexidades dos direitos de carbono
Por Kaitlin Cordes, Lorenzo Cotula e Emily Polack, 2025
Este relatório do IIED (Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento) analisa as complexidades dos direitos ao carbono biosequestrado, que se referem ao direito de se beneficiar do carbono armazenado em florestas ou solos. As autoras e autores examinam criticamente os direitos sobre o carbono e suas implicações para a governança da terra e os direitos humanos. Além de alertar para o fato de que regimes mal concebidos de direitos sobre o carbono podem desviar a atenção de soluções climáticas mais eficazes, as autores e autores discutem as características dos regimes de direitos sobre o carbono e os riscos que seu estabelecimento pode gerar para as comunidades locais e políticas governamentais mais amplas. Enfatizam que, embora os direitos sobre o carbono possam claramente ajudar a combater as mudanças climáticas, eles também apresentam riscos à propriedade da terra, às comunidades locais e às políticas governamentais. Chamar a atenção para os possíveis (futuros) problemas jurídicos e políticos que os governos podem enfrentar ao conceder direitos sobre o carbono oferece uma perspectiva importante e pouco explorada para o debate. O valor do relatório está exatamente aqui: ele exorta os governos a pensarem criticamente antes de se apressarem em adotar uma legislação que crie direitos de carbono como direitos privados negociáveis. Ele também oferece uma forte perspectiva baseada nos direitos humanos em uma questão frequentemente dominada por narrativas orientadas para o mercado. As autoras e autores não sugerem medidas concretas sobre como desenvolver políticas justas e inclusivas - mas nunca pretenderam fazer isso. Em vez de se basear em estudos de caso, o relatório se concentra em uma discussão muito necessária sobre os riscos ocultos dos acordos de carbono.
Situação dos direitos de carbono dos Povos Indígenas, das comunidades locais e dos Povos Afrodescendentes em terras e florestas tropicais e subtropicais
Por RRI e McGill University, 2024
Este resumo sobre políticas examina a situação dos direitos de carbono de Povos Indígenas, comunidades locais e Povos Afrodescendentes em 33 países da África, Ásia e América Latina. Em resposta à crescente dependência de soluções climáticas baseadas na natureza para mitigar as emissões de carbono, o resumo destaca os riscos que essas iniciativas representam para as comunidades cujos direitos à terra e aos recursos geralmente não são claros ou reconhecidos. As autoras e autores destacam que, apesar de anos de investimento internacional em REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal) e outras iniciativas climáticas, os governos não conseguiram implementar proteções legais sólidas para os direitos de carbono baseados nas comunidades. Em sua análise detalhada, as autoras e autores demonstram que apenas 19 dos 33 países têm leis que reconhecem os direitos coletivos à terra para comunidades indígenas e locais e que o consentimento livre, prévio e informado (FPIC - sigla em inglês) raramente é garantido pelas leis nacionais. Além disso, apenas três países concedem explicitamente às comunidades o direito de se beneficiarem dos mercados de carbono, enquanto na maioria dos casos esses direitos permanecem ambíguos ou são retidos pelo Estado. Além disso, as descobertas indicam que há apenas regulamentações fracas sobre o mercado de carbono e pouquíssimos registros de carbono em vigor. Concluindo, o resumo pede reformas urgentes para fortalecer a segurança da posse, garantir a transparência e estabelecer mecanismos equitativos de compartilhamento de benefícios. Considero que este resumo de políticas oferece uma excelente visão geral da situação dos direitos de carbono para Povos Indígenas, comunidades locais e Povos Afrodescendentes, com base em uma variedade de estudos de caso. No entanto, ele se beneficiaria de recomendações mais práticas, de uma análise mais profunda dos motivos pelos quais a implementação continua fraca e da apresentação de histórias de sucesso. Eu esperaria uma discussão sobre as assimetrias de poder existentes entre investidores privados, governos e comunidades, bem como sobre a influência corporativa na elaboração de políticas ou na captura da elite.
Mercados de Carbono, Florestas e Direitos: Uma Série Introdutória
Por Forest Peoples Programme e Global Justice Clinic, 2023
Este guia introdutório fornece um conjunto de breves explicações sobre os mercados de carbono e suas implicações para os direitos dos Povos Indígenas. Originalmente desenvolvido para comunidades indígenas na Guiana, o guia explicativo foi posteriormente adaptado para um público mais amplo. Ele foi criado para ajudar as comunidades indígenas a conhecer os principais conceitos, riscos e benefícios dos mercados de carbono para tomar decisões informadas. Embora o guia não discuta as estruturas nacionais de carbono em si, eu o incluí neste resumo, pois pode ser particularmente útil para comunidades indígenas e locais contribuírem ativamente para a fase de elaboração da legislação de carbono. As autoras e autores fornecem uma visão geral crítica dos mercados de carbono e mostram as diferenças entre os mercados de carbono regulamentados e voluntários. O guia também descreve os riscos associados aos Povos Indígenas, como a perda de terras, a restrição de práticas costumeiras e a falta de Consentimento Livre, Prévio e Informado. A ênfase nas principais considerações para comunidades indígenas é um dos pontos fortes desta publicação, ou seja, exigir o reconhecimento legal de suas terras antes de se envolver nos mercados de carbono, buscar consultoria independente ou a necessidade de verificar os acordos de compensação e as salvaguardas. O guia não aborda realmente os desafios de governança interna, ou seja, a gestão de fundos, a garantia de distribuição justa e a resolução de conflitos. Senti falta também de exemplos de práticas recomendadas de comunidades que se envolveram com sucesso nos mercados de carbono para garantir financiamento para a proteção da terra, o reflorestamento e o desenvolvimento sustentável. O documento é um recurso valioso. Ele seria ainda mais útil se fornecesse ferramentas práticas para as comunidades e uma compreensão mais sutil das diferentes perspectivas e necessidades indígenas. Também poderia ter incluído alguma orientação sobre como negociar acordos justos, quais termos procurar ou fornecer recursos jurídicos para grupos indígenas que buscam proteger seus direitos.
Sobre 'O Que Ler'
O Que Ler é uma publicação periódica em que pesquisadoras e pesquisadores do Land Portal compartilham uma lista de leituras e explicam por que os artigos selecionados se destacam em um mar de informações. É uma reflexão sobre alguns dos novos artigos e relatórios mais importantes, com o objetivo de identificar os pontos mais atuais de discussão sobre terras e questões relacionadas, destilar as principais mensagens e pontos de debate e lhe oferecer um ponto de partida para obter mais informações. Registre-se para receber o resumo O Que Ler.