Pesquisa mostra que projeto de desenvolvimento aumenta a desigualdade de gênero na Zona da Mata Norte de Pernambuco
Autoras: Anamaria Medeiros, Mariana Vilarim (pesquisadora) e Patricia Chaves
A Zona da Mata de Pernambuco é historicamente uma região canavieira. A indústria da cana-de-açúcar, desde a colonização, estruturou a economia, a cultura e a sociedade dessa região, o que impediu o desenvolvimento de outras atividades, gerando dependência socioeconômica da população local em relação ao agronegócio canavieiro. Para que essa dependência fosse superada e as bases econômicas fossem diversificadas, desde os anos 2000 o governo federal vem implementando projetos de desenvolvimento econômico, contando com financiamento público e privado.
No município de Goiana, esses investimentos foram direcionados para a construção de dois pólos industriais: um farmacoquímico, tendo como âncora a Empresa Brasileira de Hemoderivados – Hemobrás (inaugurada em 2012), e outro automotivo, tendo como destaque a Fábrica da Jeep (inaugurada em 2015), pertencente ao grupo Fiat-Chrysler Automobiles, FCA. Para essa região a reestruturação produtiva foi anunciada como uma alternativa ao desenvolvimento econômico e social local, gerando maiores oportunidades de emprego e renda à população.
Mas o que de fato aconteceu na região após alguns anos do processo de reestruturação ter sido iniciado?
Para entender o que aconteceu com a região nos últimos anos, a organização Espaço Feminista viu a oportunidade de comparar dados oficiais divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seus Censos Agropecuários de 2006 e 2017, buscando verificar como esses investimentos impactaram a vida das pessoas, em específico a vida das mulheres locais. Assim, durante todo o ano de 2018, a equipe do Espaço Feminista fez uma análise detalhada, comparando os números divulgados antes e após o processo de reestruturação, tendo um olhar mais atento para as questões de gênero e os efeitos produzidos na população feminina, em especial a questão da posse segura da terra.
Essa análise foi feita utilizando a mesma metodologia aplicada em uma outra pesquisa realizada na região Agreste, utilizando os mesmos indicadores relacionados aos objetivos e metas da Agenda 2030 ou do que conhecemos como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis – ODSs.
Seguindo o modelo do Espaço Feminista, toda a análise e interpretação dos dados pressupõe a escuta e a compreensão das mudanças observadas, mas a partir da visão das próprias mulheres que vivem na região e, assim tínhamos várias interpretações e diversos olhares, desde agricultoras, pescadoras, mulheres sem-terra, quilombolas e trabalhadoras rurais. Essa riqueza de olhares, análises e interpretações enriquece e legitima os dados abaixo apresentados.
Vejamos o que disseram algumas dessas mulheres:
Sobre a geração de emprego e de renda para quem sempre viveu de trabalhos sazonais e da exploração do trabalho:
“As obras empregaram o pessoal daqui só no momento da construção, depois o desemprego voltou a acontecer, até porque as pessoas que trabalham na Hemobrás e na Fiat vêm de fora do município, para nós ficam os sub-empregos”
N. Liderança local de Nazaré da Mata.
Foto: Espaço Feminista, 2018 – Diálogo com as mulheres agricultoras residentes nos municípios da pesquisa.
Durante a análise dos dados percebemos que as áreas rurais sofreram impacto na produção, no tamanho e uso das propriedades, assim como, no êxodo rural. Para elas, a atração que os novos empregos geraram, impulsionaram uma migração do campo para as cidades, resultando no arrendamento das terras nas áreas rurais e na inserção dessas agricultoras em empregos no setor de serviços, especialmente como empregadas domésticas.
O abandono da zona rural a partir da ótica do desenvolvimento industrial, por sua vez, favoreceu o avanço da cana-de-açúcar, devido ao arrendamento.
“Muita gente vendeu as suas terras na área rural e foi morar na cidade porque os homens estavam empregados na construção civil e como a terra está com cana, a mulher não tem autonomia para plantar e continuar na terra. As mulheres, geralmente, começam a trabalhar como empregadas domésticas. Muitos jovens param de estudar e vão trabalhar nas fábricas como peões ou ainda na criação de galinhas, muito forte aqui no município”
Continua, N.
Uma outra liderança local aponta a questão do arrendamento das terras e do enfraquecimento das políticas públicas que incentivavam a produção de alimentos e garantiam sua comercialização:
“A maioria das terras foram arrendadas, não tem como produzir. A prefeitura parou de incentivar projetos como PAA e PNAE e até o beneficiamento de mandioca que foi feito durante um período. Resta pro povo do campo vender as terras e tentar a vida na cidade ou voltar a produzir cana-de-açúcar para vender às usinas”
M. Agricultura, liderança na luta pela terra em Tracunhaém.
Em paralelo às políticas de incentivo à produção que garantiriam a manutenção dessas pessoas em suas terras, há a lentidão e a burocracia dos órgãos federais e estaduais no que se refere às terras de reforma agrária. Ao contrário do que ocorreu na desapropriação das terras para a implantação do Pólo Industrial de Goiana, as terras da reforma agrária têm posse provisória. Em Tracunhaém e Vicência, municípios próximos de Goiana, por exemplo, muitos hectares foram destinados à reforma agrária, porém a insegurança da posse da terra, atrelada às dificuldades de produção, vem prejudicando a vida das mulheres locais, como ressalta M.J.:
Foto: Espaço Feminista - 2019, Mulheres trabalhando na terra – Assentamento Ismael Felipe, munícipio de Tracunhaém.
Dialogando com os dados oficiais
Hoje, o Brasil conta com importantes ferramentas de análise de dados sobre a população, como é o caso dos Censos Demográficos e dos Agropecuários, além dos dados divulgadas por agências estaduais do governo. A pesquisa realizada pelo Espaço Feminista fez uso dessas e de outras informações oficiais que permitiram, por exemplo, analisar e comparar o Produto Interno Bruto (PIB) municipal, a propriedade de terras relacionadas ao sexo do proprietário e o tamanho das propriedades locais.
O impacto econômico que a reestruturação produtiva causou fica muito claro quando analisamos os PIB’s municipais. Vejamos que, num intervalo de seis anos, compreendendo os anos de 2010 a 2016, o município de Goiana, por exemplo, elevou o PIB da indústria em 770% e o de serviços em 467%. Em Nazaré da Mata e Tracunhaém, que não fazem fronteira com Goiana, os PIBs municipais também se elevaram, aumentando 220% e 168% no setor industrial, respectivamente, e 223% e 168% no setor de serviços. Esses impactos, mesmo que mais notáveis no setor da indústria e serviços, também foram sentidos no setor agropecuário crescendo 188% em Goiana, 58% em Nazaré da Mata e diminuindo 53% em Tracunhaém.
Os dados relacionados ao acesso das mulheres à terra demonstram uma mudança positiva, mesmo ainda indicando uma concentração de propriedades controladas por homens. No município de Goiana, em 2006, apenas 12,5% dessas propriedades estavam no nome de mulheres, essa taxa subiu para 31,6%, em 2017. Já em Nazaré da Mata, eram 11,7%, em 2006, e 32,8% em 2017. Por sua vez, em Tracunhaém, eram 18,0%, em 2006, e passou para 21,3%, em 2017.
Apesar da análise comparativa dos Censos ter apontado um aumento da representatividade das terras geridas por mulheres, as experiências e relatos trazidos por elas demonstram que o processo como um todo não fortaleceu as políticas voltadas à população rural, tampouco as mulheres agricultoras.
A análise dos dados trouxe ainda grandes revelações em relação ao que ocorreu em Goiana. Segundo os dados do IBGE, a maior parte das mulheres possuem pequenas propriedades, adquiridas em sua maioria através da compra do lote. Desses estabelecimentos, 61,7% possuem até 0,1 hectare de terra o que impossibilita o uso efetivo deste lote para a produção de alimentos.
Após a análise dos dados dos Censos e da contribuição das mulheres para compreendermos a situação da região, o trabalho do Espaço Feminista entra numa segunda etapa de pesquisa qualitativa onde as mulheres residentes entrevistarão a população em três municípios da região. Essa ação nos permitirá compreender melhor as transformações, impactos e as ações necessárias para mitigar o impacto de um projeto de desenvolvimento que não enxerga e nem protege os direitos das mulheres.
Mas isso é uma outra história e será contada em novas publicações, assim que a pesquisa possa ser retomada após o isolamento social imposto pela pandemia.
A LUTA CONTINUA!