Por Abahlali baseMjondolo*
Tradução: Ítalo Piva
No capitalismo racial imposto pelo colonialismo, os detentores do poder monopolizaram seu controle sobre a terra
Havia um grave problema de fome na África do Sul antes do isolamento da covid-19, resultado da longa história de despossessão colonial, exploração e abandono, que continuou sob o domínio do Conselho Nacional Africano (CNA). Também tem ocorrido graves problemas com o apoio alimentar limitado oferecido pelo Estado, que está sendo politizado por conselhos locais e seu comitês. Como todos sabem, ambos os problemas se agravaram rapidamente durante a quarentena da covid-19.
Desenvolvemos uma série de estratégias para lidar com a crise da fome. Sempre que possível, trabalhamos para construir solidariedade entre as organizações progressistas da classe pobre e da classe trabalhadora, para que possamos construir o nosso poder colectivo a partir de baixo, com o objectivo de unir nosso poder de oposição ao sistema de capitalismo racial e construir uma sociedade diferente. Uma parte desta visão é que o sistema alimentar deve ser retirado do controle do capital e colocado nas mãos do povo. Isto exige reformas radicais na posse de terra, urbana e rural, apoio à agricultura em pequena escala e a criação de mercados onde os alimentos podem ser vendidos diretamente do povo para o povo.
Também oferecemos solidariedade direta às pessoas em necessidade imediata. Quando as pessoas estão com fome hoje, precisam de alimentos hoje, então lançamos um programa de solidariedade alimentar que acolhe nossos membros em KwaZulu-Natal, no Cabo Oriental, em Mpumalanga e Gauteng. Cada filial mantém um registro cuidadoso das necessidades de todos os seus membros e quando as pessoas precisam de alimentos, o movimento fornece diretamente para quem precisa.
Além de fornecer alimentos para pessoas em necessidade imediata, estamos administrando cozinhas comunitárias em algumas ocupações. Esta prática assegura um espírito de trabalho conjunto nas comunidades. Isto é importante porque só quando os pobres estão bem organizados em sua base, é que podemos combater a opressão. Foi esse espírito de união que ajudou nosso movimento resistir os despejamentos violentos e brutais durante a quarentena. As cozinhas comunitárias também são importantes porque podem apoiar pessoas que perderam a capacidade de cozinhar sozinhas por várias razões, incluindo despejos.
Os programas de fornecimento de alimentos diretamente aos que precisam e de funcionamento das cozinhas comunitárias, são feitos observando cuidadosamente a necessidade de distanciamento físico, a utilização de máscaras e higienização. A distribuição e preparação de alimentos é também utilizada como uma oportunidade para perguntar e discutir sobre as questões políticas que levam tantas pessoas a passarem fome, num país e num mundo em que existe riqueza o suficiente para garantir que ninguém fique sem comida.
Além disso, estamos cultivando nossos próprios alimentos. O nosso movimento tem uma posição clara contra a terra como comodidade. Somos da opinião que a terra é uma dádiva para a humanidade, que deve ser atribuída com base em necessidades e gerida de forma colectiva e democrática. Somos contrários à ideia de que a terra deve ser vista como propriedade, que pode ser retida por indivíduos ou empresas e comprada e vendida.
No dia 24 de fevereiro deste ano, milhares marcharam em apoio da desapropriação da terra como comodidade. As reivindicações expressas nessa marcha foram o resultado de meses de discussões e a maioria das pessoas que participaram, são residentes de ocupações administradas de forma colectiva e democrática.
As ocupações permitem que pessoas vivam em terrenos bem localizados e próximos das oportunidades de sustento, educação e outras possibilidades da vida urbana, tanto como participar no planejamento urbano e outras formas de moldar as cidades a partir de baixo. É claro que as ocupações também possibilitam que as pessoas construam casas, bem como espaços de convívio, creches e escolas políticas. Porém, as ocupações são também, muitas vezes, espaços que permitem a jardinagem e a agricultura urbana.
Em muitos desses espaços as pessoas têm jardins individuais. Em algumas ocupações existem também hortas colectivas, sustentadas pelo movimento. Isto não é algo de novo. O primeiro projeto de agricultura colectiva que organizamos foi em Motala Heights, em 2008. A luta lá foi liderada por duas mulheres corajosas, Louisa Motha e Shamitha Naidoo. O Motala Diggers foi um projeto de hortas comunitárias orgânicas de mulheres, que continuou a apoiar o desenvolvimento de um grupo semelhante de mulheres no assentamento eMmaus próximo. Os Motala Diggers cultivava amendoins, batatas, tomates, espinafres, cenouras, feijões, couves, beterrabas, bananas e cebolas. Este projeto não garantiu apenas que as famílias tivessem alimentos, também deu às mulheres alguma autonomia em relação às formas de exploração e racismo do trabalho. Em 2008, Faith Nyende explicou bem a situação: "Estamos cansadas de lavar uma carga grande por centavos e depois levar esse pouco dinheiro para comprar comida nas lojas. Em vez de lavar, agora cavamos juntos e cultivamos juntos a nossa própria comida”.
Uma das hortas comunitárias que vem florindo apesar dos repetidos ataques do Estado durante estes tempos difíceis, está na ocupação do eKhanana em Cato Crest Durban. Esse jardim comunitário recentemente virou notícia nos meios de comunicação social progressistas. Aqui existe uma horta comunitária, e loja, com o trabalho organizado rotativamente por uma cooperativa de moradores. Como foi divulgado nos meios de comunicação, neste assentamento, a horta não só tem fornecido alimentos saudáveis para a comunidade, mas o dinheiro arrecadado na loja foi utilizado para comprar três banheiro químicos, máscaras, luvas e desinfetantes para os residentes.
Nesta ocupação você verá a bandeira do nosso movimento voando alto, assim como a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. Existem também ligações com o Potere al Popolo na Itália. Alguns de nossos membros já passaram algum tempo com o MST no Brasil e vemos a nossa própria luta para ocupar terras e cultivar alimentos, como parte de um movimento internacional.
Outros projetos estão entusiasmados com o que foi conquistado em eNkhanana e estão trabalhando para criar suas próprias iniciativas alimentares colectivas. Na vizinha eNkanini, os membros da comunidade também estão plantando hortas de legumes e milho. Isto é socialismo de baixo para cima. O socialismo está a garantindo que ninguém nas nossas comunidades passe fome. O socialismo está a repossuindo a terra a partir de baixo, estabelecendo cooperativas geridas democraticamente, e construindo uma capacidade colectiva de produzir alimentos fora do sistema capitalista.
Sob o sistema de capitalismo racial imposto pelo colonialismo, os detentores do poder monopolizaram seu controle sobre a terra, transformando-a em propriedade privada. Isso empobreceu o povo e o forçou a aceitar formas de exploração laboral para sobreviver. Hoje, milhões de pessoas continuam empobrecidas e sem-terra tendo acesso a alimentos apenas através dos supermercados, que fazem parte do mesmo sistema capitalista que nos tornou e nos mantém pobres.
Antes do colonialismo, nossos ancestrais não possuíam, não compravam nem vendiam terra. Eles não vendiam o seu trabalho. As pessoas viviam plantando os seus próprios alimentos e pastando seu próprio gado. Se uma família caísse na pobreza, outra família lhes emprestaria uma vaca para que pudessem ter leite. Assim que a família voltasse a ter seu próprio gado, podiam devolver a vaca. Isso se chama ubuntu. O ubuntu leva ao ubuhlali que leva ao socialismo democrático a partir de baixo.
*Movimento de moradores da periferia na África do Sul
Esta matéria foi originalmente publicada em Brasil de Fato.