Fernanda Santana
Em entrevista, autor de Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, que está em Salvador, diz que nem mesmo ele pode se considerar uma pessoa sustentável
Ailton Krenak, 67 anos, balança o braço esquerdo no ar, enquanto diz: “Um voo de um pássaro no céu, um instante depois que ele passou, não há rastro nenhum”. Uma das lideranças indígenas da tribo dos Krenak, às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, está certo de que a passagem humana na Terra, ao contrário do voo dos pássaros, deixa rastros de destruição. Por isso, ele sempre pensa formas de adiar o fim do mundo.
No ano passado, Krenak lançou, em 88 páginas, suas Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (Cia da Letras | R$ 25). Hoje, o livro já é um dos mais vendidos do Brasil. No Festival Literário de Paraty (Flip) de 2019, um dos termômetros do mercado editorial, a coletânea de três textos retirados de palestras país afora foi um dos três livros mais vendidos.
”Eu acho que tá todo mundo muito incomodado. É como se tivesse uma consciência latente atravessando as rotinas das pessoas em qualquer lugar”, resumiu Krenak que apresentou nesta sexta-feira (24), em Salvador, num congresso, mais de suas ideias para contornar o fim.
Ele, que vive junto a 130 famílias Krenak, questiona desde as formas de pensar sustentabilidade às possibilidades e impossibilidades de mudar. “Se a gente disser que vai viver uma vida sustentável é mais uma vaidade pessoal", opina. Nem ele se diz sutentável.
Durante quase duas horas, Krenak tenta provar que o fim não é uma profecia, mas uma provocação. O indígena é professor e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora.
“A gente não precisa tirar um juízo moral disso, dizendo que uma parte do planeta é filha da puta e outra é boazinha".
No final da conversa, a impressão pode ser tanto apocalíptica, quanto tranquilizadora. "Não serão pessoas, individualmente, que farão a diferença, porque agora nos constituímos numa força planetária atuando de maneira predatória". Mas, se o mundo está acabando, "que possamos colorir os paraquedas e cair serenamente", brinca o autor. Pode ser uma boa forma de adiar o fim.
Ideias para adiar o fim do mundo já é um dos mais vendidos. Por que você acha que há tanta curiosidade sobre o livro?
Isso pode estar denunciando um sentimento, que atravessa diferentes gerações, de que estamos, no século 21, vivendo uma distopia. É como se todas as possibilidades de imaginar mundo tivessem se esgotado, e esse mundo, que estamos consumindo agora, parece insuficiente para serenar os corações.
Mas você diz que, na verdade, o título, é uma provocação. Por que?
Eu tinha sido convidado para uma palestra no mestrado de desenvolvimento sustentável da Universidade de Brasilília (UNB). Como a palestra ia acontecer dali a quatro meses, estava no quintal de casa trabalhando, e me ligaram, eu disse que aceitava e depois eu me organizaria. Só que a pessoa ligou de novo e disse que precisava de um título para minha palestra. Eu estava ocupado no quintal e retornei dizendo: “Ideias para adiar o fim do mundo”. Quatro meses depois, eles disseram que estava todo mundo me esperando para minha conferência, para ver as ideias para adiar o fim do mundo. Menina, eu parei e fiquei pensando: “Ideias para adiar o fim do mundo? Eu disse isso?”. Ele respondeu que sim, que todo mundo tinha ficado curioso pelo título, ferveu, e queria saber formas de adiar o fim do mundo. Fiquei surpreso com o tanto de gente que estava lá querendo ouvir a conferência sobre ideias para adiar o fim do mundo.
Como o mestrado estava discutindo sustentabilidade, eu aproveitei para falar sobre a ideia de sustentabilidade. Botei em questão se tem algo possível de se pensar como sustentável no modo de vida urbano e moderno que nós compartilhamos em vários lugares, que é um modo de vida consumista, predatório, que polui e esquenta o planeta. Qual atividade pode ser sustentável dentro de um sistema desse?
A produção de alimento com certeza não é sustentável, porque o alimento já vem para mesa com veneno. Tem uma campanha, inclusive, chamada O Veneno Está à Mesa, que é uma campanha de conscientização de que, quando você come um Danoninho, ou um tomate, ou um morango, você já está comendo uma dose de veneno. Pensa bem que absurdo você ter consciência de que você está se alimentando com uma boa dose, naquela comida sua, de veneno. Veneno mata. Não é sustentável.
Então, botei em questão isso e discuti o mito da sustentabilidade, como uma narrativa que foi criada pelas corporações para continuar conquistando consumidores com a ideia de aquilo que você está consumindo é produzido de uma maneira sustentável, mas é uma mentira.
Mas é possível pensar em alguma forma de sustentabilidade nesse mundo?
Nós somos uma população estimada em oito bilhões de pessoas. Para dar comida e acessar a todos esses bens que o mercado proporciona é impossível ter sustentabilidade. Para todo mundo consumir tudo, nós vamos devorar o planeta numa escala que já é medida. Um exemplo bem didático que costumam dar é de uma pessoa que trabalha e tem um salário. Se ele chegar no dia 19, 20 do mês, e tiver acabado o salário, significa que ele ficará 10, 11 dias, pendurado no armazém, na caderneta, ou no cartão, no banco. Se ele vai ficar 10 dias a cada mês devendo, quando chegar no final do ano, ele estará devendo uma boa do que ele consumiu. A conta dessa pessoa não fecha. Mas não estamos falando de um indivíduo, estamos falando de um planeta.
A conta do planeta não fecha e parece que no ano de 2019, no início de junho, já tínhamos entrado no vermelho. Esse “entrar no vermelho” é muito significativo porque estamos caminhando para um aquecimento global em que a temperatura do planeta pode aumentar de 1,5ºC a 2ºC por ano. Se o planeta chegar nessa temperatura, vamos derreter. A infraestrutura que existe nas cidades vai sofrer um colapso. Tem um livro chamado Terra Inabitável, que foi publicado também no Brasil ano passado, de David Wallace, que demonstra que todas as tentativas do mundo de regular o consumo, produção, distribuição de mercadoria é insustentável.
A terra inabitável é um anúncio de que se aumentamos 1,5 ºC, 2ºC por ano, bilhões de pessoas vão morrer no planeta. Não é só uma notícia ruim, mas é uma alerta de como nossa pegada no planeta está ficando pesada e essa observação sobre o Antropocenos e sobre a sustentabilidade são basicamente o eixo de Ideias Para Adiar o Fim do Mundo.
Não é só uma profecia, uma parábola sobre fim de mundo, é uma revelação sobre como nós estamos fazendo escolhas erradas. A maior parte da população do planeta e as cidades são grandes consumidoras de energia. Cidade não produz nada, consome. Você pode ver: se acabar a luz aqui à noite, numa chuva, tudo para, e a consequência é uma cadeia desastres por causa disso. Essa armadilha urbana, insustentável, é um emblema dessa desregulação que estamos vivendo na ecologia do planeta e na circulação das pessoas no mundo.
Diante de tudo isso, você consegue ser sustentável? Alguém consegue?
Não. Quando eu fizer a minha conta, vou descobrir que deixei resíduos, lixo, que produzi coisas que não sou capaz de dar conta da sua destinação final. Se eu mexi com materiais que foram alterados e não tenho onde destinar ele depois, significa que eu estou criando resíduos, deixando lixo na terra, e estou desequilibrando minha passagem por aqui. O que contraria muito um princípio do pensamento indígena da ancestralidade. Eu fico feliz de a juventude indígena estar cada vez mais consciente sobre isso e entender a ancestralidade. Ser fiel a essa herança, a essa ancestralidade, significa buscar reconciliar modos de vida que estamos experimentando com ideia de que a nossa vida deveria imprimir menos marcas por onde passamos. Um voo de um pássaro no céu, um instante depois que ele passou, não tem rastro nenhum.
Nós deixamos rastro demais e toda cultura que deixa rastros é insustentável. Vamos imaginar que quando nosso povo vivia no litoral, na mata atlântica, no cerrado, na floresta, em cada ciclo da natureza, comíamos frutos de cada estação, bebíamos agua pura onde existia, não produzindo lixo, isso era sustentável. Quando você sai desse ambiente e começa a experimentar outro consumo, outra circulação, você já entrou no circuito dessa insustentabilidade.
Então, o livro é mais uma provocação ou você acha que verdadeiramente nós podemos resgatar esses vínculos a ponto de revertemos o quadro?
A Organização das Nações Unidas (ONU), a Unesco, esses organismos grandes, que configuram a política global do ponto de vista da economia, de mercados, tecnologias, não conseguiram diminuir o dano, e não serão pessoas individualmente que farão a diferença, porque agora nos constituímos numa força planetária atuando de maneira predatória.
Mesmo uma criança inocente, balançando as perninhas no bercinho, e recebendo um talquinho e uma fraldinha, já está no circuito predatório. Ele é inocente, mas já está predando o planeta. Por causa dos nossos hábitos de consumo e pela nossa alienação em relação a origem de tudo que a gente come, bebe, veste. Então, nosso abrigo, nossa comida, nosso transporte, é tudo insustentável. Se a gente disser que vai viver uma vida sustentável é mais uma vaidade pessoal, de alguém que vai comer comida orgânica, só vai andar de bicicleta, por exemplo.
Me lembro de um amigo que, há 20 anos, me disse: “não concordo de dizer para meu filho que tem 4, 5 anos da idade que ele precisa economizar água na hora de tomar banho, quando sei que as indústrias usam bilhões de litros d’água e ninguém manda elas diminuírem”. Então, eu pensei: “nossa, não tinha considerado ainda a diferença que é uma criança que diminui o consumo de água no banho, enquanto as corporações consomem bilhões de litro d’água”. Quantos bilhões de litro d’água você acha que a Coca-Cola usa para engarrafar?
Não faço ideia.
Então, são bilhões. Por que alguém não fala com a Coca-Cola para ela parar de usar a água? Por que que vão falar para seu filho? Por que as campanhas públicas, municipais, estaduais, diz para dona da casa fechar a torneira? É para criar um ambiente psicológico que despista a verdadeira razão do esgotamento das fontes de água pura. Essa água vai continuar existindo no ciclo do planeta, com a mesma quantidade, mas não será mais água potável. Vai ser que nem a água que o Rio de Janeiro distribui para a sua população, que descobriram que está cheia de esgoto. Se uma cidade do tamanho do Rio chegou a ponto de colapsar a distribuição de água para consumo doméstico, imagine outros lugares que não são tão vitrine como o Rio de Janeiro.
E é possível fazer alguma coisa?
É possível pôr em questão se o jeito que estamos vivendo no mundo é a única maneira de continuar vivendo aqui. Tem gente que acha que é possível outras maneiras de continuar vivendo aqui na terra, no planeta terra. Só que algumas dessas ideias são racistas e de classe, sugerem que quem sabe viver no mundo são os ricos. O próprio ministro de economia, Paulo Guedes, foi para Davos, e disse que a pobreza é responsável pela destruição do meio ambiente. Essa foi a parte da frase dele que mais foi rebatida, mas alguém disse que a frase dele é completada com um comentário dizendo que “Nós nos descolamos da natureza”.
Então, se nós nos descolamos da natureza, no dizer dele, e a pobreza é que destrói o planeta, você pode ficar preocupada com essa afirmação porque ela é racista e classista. Porque é alguém que está no lugar do rico dizendo que os pobres – que são 80% da população do planeta – que estão destruindo o planeta. Ela pode sugerir inclusive que os ricos decidam que os pobres não precisam viver mais. Então, é possível, tá vendo como tem contas diferentes?
Têm contas que vão sobrar para você pagar.Eu estou dando esse exemplo para colocar junto a outro exemplo de um indivíduo conserva água, muda hábitos, uma pessoa, a manipulação de que uma pessoa fazendo isso vai mudar a nossa situação global, é uma falsificação. Porque a única possibilidade, e ela já está atrasada, envolve mudança na superestrutura que é capitalista e que não para. Por isso eu disse: “alguém fala com a Coca-Cola para parar de consumir água do jeito que ela consome para fazer um refrigerante? E depois todas as embalagens e todo o processamento”.
A gente pode ir para muitos outros exemplos. A gente vive hoje num mundo onde todas as pessoas dependem de combustível fóssil. O combustível fóssil já deveria ter sido abandonado na década de 90. Todos os relatórios da década de 90 diziam que a gente precisava parar de consumir petróleo. De lá para cá, a gente aumentou impressionantemente o tanto de coisas feitas de petróleo. E elas são feitas aos milhares. Quando você pensa e busca se informar de verdade sobre esse desvio que, nós como comunidade imaginária, nos tornamos todos consumidores.
Nós estamos estendendo nossos tentáculos sobre os recursos do planeta e ignorando que a Terra é um organismo vivo. Esse deslocar-se da natureza só é possível para alguém que se acha capaz de colonizar outros planetas além desse.
Por que estamos nos deslocando da natureza, como você diz?
Tem pensadores que dizem que, no evento da Modernidade, nós os humanos, quase humanos, fomos aproximados de uma ideia de autossuficiência, de que a gente podia incidir sobre a vida aqui na terra transformando a natureza a nosso serviço. No começo, só algumas pessoas que aceitavam esse novo paradigma. Com o avanço disso que foi chamado de civilização, e com o advento da globalização, esse circuito tomou conta do planeta inteiro. Mesmo os bosquímanos, que estão no Kalahari, África, também já fazem parte desse circuito de consumir o planeta.
Por que nos atraímos tanto por essa ideia da modernidade?
Por que ela é fascinante, ela é como um veneno.
Mas ainda é possível resgatar esses vínculos perdidos e ter o mínimo possível de conexão com a natureza?
Esse sozinho não fazer a diferença, a percepção disso, muda muita coisa. Quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, eu abro para outras perspectivas onde eu também vou ver os outros, o outro, um outro múltiplo de outros e outros e outros.
"E, dessa afetação pelos outros, pelo outro, é daí que pode sair uma compreensão comum, de nós todos, em alguns lugares do mundo, voltarmos a ter outra compreensão sobre nós mesmos e sobre a Terra, sobre a vida aqui na Terra. Ainda é muito elitista a ideia de que a Terra é um organismo vivo".
Tem dois extremos: se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu essa memória, e você é herdeiro dessa memória, você não precisa resgatar ela, porque ela está em você. Mas se você perdeu ela, passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior.
Mas o que eu acho é que, como ainda há ilhas no planeta que ainda se lembram o que é, o que estão fazendo aqui, elas podem positivamente contagiar os outros com uma outra percepção da vida aqui na Terra. Muitos valores que temos, que achamos fundamentais para a humanidade foram criados e foram incutidos na nossa cultura, na nossa mentalidade. Não no sentido individual, mas no sentido de massa, de grandes contingentes.
Tipo quais?
Uma delas é que todos nós temos o direito de consumir. Isso é uma mentira. Hoje de manhã lembrei de uma frase de Mahatma Gandhi, quando um jornalista inglês perguntou para ele, naqueles conflitos da libertação da Índia do império britânico: “tem gente demais no planeta, o senhor acha que a Terra pode atender a demanda de todo mundo, quando no planeta deveria menos da metade dos que somos hoje, uns dois ou três bilhões de pessoas?”.
E ele era sempre questionado pelo pensamento ocidental sobre as ideias de simplicidade que ele pregava. Ele respondeu: “a Terra tem o suficiente para todas as nossas necessidades. O suficiente para nossas necessidades”.
"Mas se você quiser uma casa na praia, um apartamento na cidade e um Mercedes-Benz, não tem para todo mundo. Olha, eu sempre admirei a coerência de Gandhi quando ele confrontava o pensamento do povo dele, o pensamento tradicional do povo dele com relação à ideia do ocidente moderno. Continua valendo".
O que estamos fazendo na Terra, então?
Muitos povos, em diferentes matrizes culturais, constituem cosmovisões. O que é uma cosmovisão? É uma compreensão da experiência de estar vivo aqui na Terra e uma interpretação do que é essa Terra e o que somos nós. Algumas cosmovisões ensinam que nós e a terra somos uma mesma entidade, que nós respiramos juntos com ela, que sonhamos junto com esse organismo que é a Terra. Os cientistas, nos últimos 30 anos, se debateram sobre a hipótese de Gaia, de que a terra é mesmo esse organismo inteligente, vivo.
Os darwinistas torciam o nariz para essa hipótese, nas décadas de 80 e 90, mas, hoje, a grande maioria dos cientistas que estudam clima e que estudam a própria constituição do planeta concordam que a Terra é um organismo vivo, não é uma matéria inerte que podemos incidir sobre ele sem ter consequências. Ele é um organismo vivo que, a cada mexida que você dá, ele altera, cada medida altera.
Nós mexemos com o oceano? Altera. Nós devastamos as florestas? Altera. Nós tiramos as montanhas e transformamos em planície? Altera. Altera esse organismo e alguns dizem que ele está com febre. Esse organismo vivo está com febre e pode ser uma maneira de atribuir a esse organismo vivo sentimentos que seriam exclusivamente de ordem dos humanos.
Assim, o corpo humano pode ter febre, adoecer. Talvez seja atribuir esse organismo da terra as mesmas suscetibilidades que o nosso corpo tem. E faz sentido. Nós não somos constituídos de 2/3 de água e depois vem o material sólido que são nossos ossos, músculos, essa outra carcaça?
Então, nós somos mesmo micro-cosmos desse organismo vivo da terra, só que precisamos nos lembrar disso.
E é possível que esses micro-cosmos dialoguem?
Até no começo do século 20, o mundo do trabalho e da produção era feito com ferramentas e meios que não tinham a potência de exaurir recurso da terra como temos hoje. Desse tempo para cá, sobraram poucas humanidades espalhadas pelo planeta nessas condições de quase humanos. Eles não estão engajados no consumo planetário, não se tornaram consumidores no sentido clientela, eventualmente eles consomem alguma coisa desse mundo industrial, mas não são dependentes disso para continuar existindo. Essa gente é o remédio da Terra.
Eles são os remédios da febre do planeta. Como a desigualdade é desigual no mundo inteiro, sobrou gente fora desse balaio civilizatório que ainda sabe, ainda reflete sobre uma cosmovisão, estão protegidos por essa memória e são capazes ainda de pensar outros mundos e construir outras perspectivas de mundo. Nesse sentido que falei desses que ainda estão agarrados nas bordas do planeta.
Então, mesmo numa tribo, por exemplo, as coisas mudaram?
Mudou a própria relação com a natureza e mudou a própria situação de suprimento dessas pessoas, o que essas pessoas têm necessidade de consumir mudou. A lista de coisas que essas pessoas precisavam para passar um dia, uma semana, um mês, mudou, e inclui itens considerados de higiene.
"Ora, eu já fui a lugares da floresta onde ninguém nunca tinha visto ou pensado sobre a necessidade de um creme dental, uma escova de dente, um sabonete ou um shampoo. E as pessoas estavam saudáveis, com dentes saudáveis, você pode ver as fotografias, tinham um aspecto saudável".
Mas depois desse desastre e depois desse contato, eles não vão querer viver mais sem papel higiênico, sabonete, escova de dente, creme dental, shampoo e alguns remédios, drogas de farmácias industrializadas que viraram uma espécie de máquina para curar depressão, dor de cabeça, porque é fascinante, é um veneno.Todo mundo cria dependência com relação a esse grande abarcamento do mundo das aparentes necessidades humanos.
Você chega a dizer, no livro, que as corporações não superam a capacidade imaginativa do povo ligado à terra. Por que isso acontece?
Na biologia, quando um organismo se torna um superorganismo, ele devora os outros. Na natureza, é assim. Esse fenômeno que estamos experimentando de dissociar a experiência humana do planeta divorcia o nosso sentido de estar presente aqui e essa inveja, intolerância com a diferença, é parte da atuação desse organismo gigante que não pode suportar essa diferença, tem que devorar essa diferença. Essa atração que esse núcleo grande produz, suga todo mundo para dentro dele, é consciente.
"O capitalismo não suga a periferia do planeta de maneira involuntária, inconsciente, faz isso se valendo de toda inteligência e complexidade que o sistema de mercadorias, que o capitalismo, manipula, e de imagens e desejos. "
Tem uma ativa pessoa que pesquisa, mas que também intervém na realidade, uma grande ativista dessa questão da alienação crescente desde os anos 60, 70, do século passado, que se chama Sueli Ronick.
Ela tem um livrinho chamado Esferas da Insurreição, que diz que o capitalismo sofreu uma transformação tão grande que se transformou no necrocapitalismo. Esse capitalismo financeiro não precisa mais da materialidade das coisas, ele pode transformar tudo numa fantasia financeira e fazer de conta que o mundo está operante ativo, mesmo quando tudo estiver entrando pelo cano. É uma distopia, ao invés de a gente imaginar mundos, a gente só consome o mundo.
Que humanidade é essa que só consome o mundo?
Na verdade, não é uma ideia de humanidade que construímos, mas à qual fomos convertidos. Entendeu a expressão? Fomos convertidos a uma ideia de humanidade que não é real. É uma pós-humanidade. Se houve uma experiência, em algum tempo, que teve a ver com essa ideia de humanidade, ela aconteceu na antiguidade. Tanto que alguns dos valores a que se recorre para se resgatar um pouco o sentido da vida na terra vem do pensamento grego, vem dos gregos ou de algum povo tão antigo quanto, que pode inspirar alguma visão para essa humanidade imaginada continuar sendo crítica e capaz de se perceber no mundo.
Não somos nós que criamos a ideia de humanidade, é importante que a gente fique alerta. Assim como alguns valores que são pensados como valores humanidades fundamentais são induções. A expressão civilizada ou civilização é um conceito, que é dominante, e se impõe aos outros que não estão dentro da civilização.
É por isso que um povo pode subjugar o outro e impor a ele uma religião, uma disciplina, uma língua, uma cultura, porque essa operação se chama civilização, processo civilizatório, e ele é o núcleo do pensamento colonial. O colonialismo existe porque tem esse repertório de afirmação. O colonialismo diz: vamos modernizar, vamos civilizar, vamos humanizar.
Eu gosto muito do Carlos Drummond de Andrade, não só porque ele é meu vizinho, na região de Itabira, em Minas Gerais, mas porque ele tinha observações sobre nós, os humanos, e o mundo, que me interessam muito. Tem um poema dele, O Homem e Suas Viagens, que fala dessa humanidade que pensamos que temos, descartando esse planeta e indo colonizar outros planetas, até o sol. O poema vai especulando sobre esse caminho que o homem faz e conclui dizendo que a viagem necessária que nós, os humanos, temos que fazer é para dentro de nós mesmos.
Então, não precisa de uma nave para você ir para Júpiter, para Marte, precisa de uma capacidade de viajar para dentro de si mesmo, não num exercício egoico, mas numa experiência de autoconhecimento.
O que você acha, então, que é ser humano?
Na cultura Krenak, esse nome “krenak” não é nossa autonomeação. Nossa autoidentificação é “burun”, quer dizer, seres humanos. Desde sempre, quando alguém perguntava lá na antiguidade para alguém do nosso povo, quem é você? A primeira coisa que ele ia dizer era: “seres humanos”. Esse enunciado de seres humanos considera que existem outros seres, que não são exatamente como nós, que são outros, e que eles também têm existência. Eles não são humanos, mas são seres e tem existência. Esse lugar de se imaginar “seres humanos” não define o que é humano, só abre a possibilidade de outros seres para além de nós.
Ele deve estar associado à compreensão de que a Terra é um organismo vivo e que tudo que existe na Terra existe como nós, tem uma experiência parecida com a nossa. Nós não temos uma experiência excepcional, temos uma experiência igual a qualquer organismo que vive na terra, essas plantas que estão por ai, os seres invisíveis que estão aqui, tem microrganismos... tudo. Se nós somos uma vida junto com eles, tudo bem. O problema é quando pensamos que somos a única vida aqui, a ponto de, quando a base para sua continuidade aqui não for suficiente, a gente vai reproduzir em outro lugar.
Mas por que uns colonizam e outros são colonizados, se todos são humanos?
Se lembra que mencione minha querida Sueli Ronick? Ela desenvolveu, junto com outros colegas dela, no campo da psicanálise, uma compreensão que diz que isso é pulsão. Aí tem a ver com outros filósofos, outros pesquisadores, que falam em pulsão vital. O que move um grupo de pessoas de uma determinada cultura a dominar e colonizar os outros tem a ver com a pulsão. Se você tiver vontade de conhecer um pouco mais, você vai ver que tem a pulsão de vida e de morte. É Yin e Yang. São princípios que se alternam, dia e noite, quente e frio, se alternam. Essas coisas que se alternam.
Não é um julgamento sobre o que é bom o que é ruim, é só um entendimento de que as coisas se alternam. Se tem uma parte da humanidade que experimenta dominar a outra, gosta disso e amplia essa dominação sobre os outros e vira um império, um dia ela vai acabar, exatamente porque tem o ying e o yang. Tem o começo e tem o fim.
Eu não tenho nenhuma pretensão e decifrar porque uns colonizam e outros não, mas eu sei que tem uma parte dos organismos vivos na terra que experimentam uma existência contemplativa e pacífica, e outros que são mesmo ativos predadores. E nós fazemos parte desse mundo todo.
"A gente não precisa tirar um juízo moral disso, dizendo que uma parte do planeta é filha da puta e outra é boazinha".
E hoje você acha que estamos mais incomodados ou acomodados?
Eu acho que tá todo mundo muito incomodado, mesmo. É como se tivesse uma consciência latente atravessando as rotinas das pessoas em qualquer lugar. É como se fosse um incômodo que afeta todo mundo. Mesmo as crianças. Você pode ver que o movimento na Europa provocado inicialmente pela Greta Thunberg, ele se espalhou pelo mundo inteiro, não se limita mais a Europa, e lá mobiliza milhões de pessoas – o que é muito difícil, os europeus não saem assim, à toa, do seu conforto. Isso significa que tem um incômodo grande e que ele está afetando até as crianças, adolescentes.
Eu acredito que é bem provável que na próxima década as crianças não queiram ir para as escolas, não aceitem ir na escola, porque eles vão entender que é uma continuidade do esquema. É isso que os meninos e meninas estão fazendo, estão dizendo ao mundo que os adultos falsificam uma narrativa sobre o mundo, e eles não querem. Eles dizem: os adultos traíram nossa geração, as autoridades mentiram.
Ora, se tem um mundo de pessoinhas nessa idade falando isso, pensando isso, afirmando isso, cria uma força de mudança tão grande. A gente não sabe em que sentido a mudança virá, mas uma delas acho que é de botar em questão se essa civilização tem o direito de continuar se perpetuando mandando as crianças para a escola para reproduzir esse sistema podre.
Hoje, qual é a parte mais podre, a divisão mais brutal?
Eu acho que ela continua sendo essa dualidade, esse eu e o outro. Mas por uma razão que seria interessante comentar que é: nos vivemos o tempo inteiro negando o outro, o outro não existe, o desejo do outro não existe, a possibilidade do outro não existe. Mesmo quando a gente está cercado de diferença, a gente nega que aquela diferença existe e faz sentido, tanto quanto eu estar aqui e você estar aqui. O que persiste é isso. Se o mundo está dividido, está dividido em um certo eu e um outro, que precisam descobrir termos de alternância, igual eu mencionei.
Isso dá algum espaço para o radicalismo?
O radicalismo é como se fosse uma irrupção de um outro lugar que não deu conta de se resolver, cria uma outra plataforma para prevalecer o conflito, não é uma alternância, é só uma forma de projetar um conflito. Não acredito em radicalismo para resolver nada. A única coisa que o entendimento do outro pode nos possibilitar é aceitação e negociações dos termos de a gente continuar coexistindo, convivendo. Um dos termos que foi muito usado era tolerância. Até o papa fez campanha de tolerância, vários organismos fizeram campanha, porque achavam que precisávamos de uma cultura de tolerância, mas não foram consequentes em animar as pessoas para ir além da tolerância.
A tolerância vale também para lidar um possível inimigo desse projeto, como o capitalismo?
A mesma dificuldade que muita gente tem para entender que a Terra é um organismo vivo, eu tenho de entender que o capitalismo é um ente com o qual podemos tratar. Ele é um fenômeno, não é um ente, mas um fenômeno que afeta a vida e o estado mental de pessoas no planeta inteiro, mas não vejo como dialogar com isso. Claro que todos são pessoas que têm alguma coisa para dizer, nem imaginei a possibilidade de tratar as pessoas com tal diferença.
Você fala que alguns espaços, como a universidade, podem ser “roubadas”. Por que, ainda assim, você decidiu estar nesses espaços?
Exatamente para poder dizer isso sem ser uma fofoca, poder dizer isso, argumentar com as pessoas e abrir a possibilidade de produzir junto com alguns deles reflexões sobre isso. Tem um colega meu, engenheiro da UJF, nós dois publicamos um artigo junto, em colaboração, sobre a técnica, e ela fala exatamente sobre essa pós-humanidade.
Como a gente pode se abrir a esse diálogo, ainda que a diferença possa machucar?
Vamos pensar uma linha do tempo. Quando eu falo, “ah, os índios resistem há 500 anos”, quero dizer que, ao longo de toda a história, a gente passou por uma constante refrega com essa ideia que se constituiu no capitalismo global que domina o mundo inteiro. A maioria das pessoas que estão ao nosso redor só percebem isso num período de 10, 20 anos, eventos recentes. Quando você tem uma memória de que não é um evento recente, você fica mais resiliente, fica mais capaz de se reconstituir de novo, de se reconstruir, recriar. Exatamente pela memória.
Os povos tradicionais valorizam muito a memória e às vezes fazem até uma crítica ao mundo de registros, dos museus, das academias, porque acham que as pessoas ficam dependentes desses mecanismos porque não têm memória. E quanto mais ficam dependentes desses registros, mais eles acham que não precisam guardar uma memória de si, de quem são, de onde vieram. Ninguém está impedindo de mudar, mas alguns povos preferem manter as suas memórias e cultivar essas memórias como um valor.
Parece que isso tem a ver com a ideia de que sempre estivemos caindo. Por que, então, a gente tem tanto medo de cair?
Não é em todas as culturas que a ideia de cair é uma ideia fundadora. Em algumas culturas, a ideia de cair está dentro do ciclo da existência. Ele se articula com a ideia da semente, que se enterra, morre e vira a árvore e dá mais semente, e frutas, e vira semente, e enterra de novo. Ciclos. Têm muitas tradições no mundo que guardam essa compreensão da existência, tem outras que não, que acham que a experiência de vida é curta e que tem uma morte que é uma ruptura dessa experiência que é irreconciliável e a única forma de reconciliar isso é através da religião. O pensamento judaico-cristão é muito vasto e é infiltrado em quase todas as culturas do mundo hoje, incultindo a ideia de culpa, e dizem que a mãe de toda a humidade, Eva, e o pai, Adão, tiveram a primeira queda deles no Eden.
Esse mito está espalhado pelo mundo inteiro há pelo menos 4, 5 mil anos. Depois, modernizado na forma de cristianismo, ele se disseminou por quase todas as culturas, quase, do planeta, e quase todas pregam uma ideia de queda, que, no caso, é o inferno. Difunde uma moral sobre a vida e o mundo que é judaico-cristão. É por isso que eu digo, nós sempre caímos, qual é problema? Esse “nós", inclusivo, é também uma entrada minha nesse mundo culpado pela queda, chamando a todo mundo e dizendo que está todo mundo inteiro caindo e qual é o problema de cair? É minha perspectiva de conversar com o outro.
Por que, com essa técnica, esse conhecimento, essa ciência, esse aparato todo sem destino que estamos manipulando, não dirigimos ele, por exemplo, para construir paraquedas coloridos? O que seriam esses paraquedas? Essa experiência de estarmos aqui, conversando, é uma experiência de soltar sem medo de cair, experimentando esse salto caindo.
Quais são, dito tudo isso, as ideias para adiar o fim do mundo e se soltar sem medo de cair?
Ter a oportunidade de encontros como esse, onde um ouve, pergunta, escuta, responde, onde as falas não caiam no vazio, mas elas semeiam, em mim, em você, encontros.
Esta matéria foi originalmente publicada em Correio.