Mulheres e agroecologia, a luta é todo dia (Brasil) | Land Portal

Autor: Adriana Galvão Freire

Ligória Felipe dos Santos é agricultora no semiárido brasileiro. Nasceu e se fez mulher numa comunidade rural, no município de Esperança, na Paraíba. Nasceu numa família de 7 irmãos e desde muito cedo conheceu o peso da divisão sexual do trabalho, tornando-se responsável por todos os cuidados da casa e dos irmãos; muito nova aprendeu sobre a injustiça do latifúndio quando sua família foi expulsa das terras onde morava e trabalhava para tentar a vida na cidade. Para se livrar do sofrimento, casou-se cedo, aos 19 anos. Muito nova, também aprendeu sobre violência doméstica. Separou-se e casou-se novamente, mas ainda não foi dessa fez que conheceu a felicidade. Seu segundo marido é alcoólatra e igualmente violento. E é por meio de seu trabalho na agricultura, que vem criando seus dois filhos e sua neta.

Foi justamente movida pelo amor aos filhos, que Ligória nunca desistiu frente às dificuldades que a vida impôs. Se ficava difícil, se erguia, mesmo que calada, e retomava o ritmo predestinado do árduo caminho que a vida lhe conduzia. As crianças já estavam crescidas quando conheceu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de seu município, e com ele o Polo da Borborema, uma articulação de sindicatos e organizações da agricultura familiar de 14 municípios da Borborema, no estado da Paraíba. O contato com a dinâmica social promovida pelo Sindicato e pelo Polo, permitiu a Ligória conhecer e trocar experiências. Começou a participar de visitas de intercâmbios, e a quebra de seu isolamento, possibilitou com que ela se encontrasse e se reconhecesse na experiência de outras mulheres agricultoras, viabilizando uma paulatina ruptura das barreiras culturais que a prendia na cozinha de casa.

A partir dos intercâmbios, Ligória passou a olhar diferente para seu quintal. O que antes era invisível, insignificante e sem valor, para ela e para toda sua família, passou a ser reordenado, experimentado, e conseguiu adquirir novos bens – como cisternas de placas para armazenamento de água da chuva para beber, telas de arame ou animais – via políticas públicas ou, principalmente, pela capacidade adquirida pelas mulheres do território de se auto-organizar por meio de Fundos Rotativos Solidários – um sistema econômico comunitário e solidário.

O quintal de Ligória foi se tornando um subsistema importante para dentro do estabelecimento familiar por sua capacidade de gerar riquezas, segurança e soberania alimentar e bem-estar para a família. Ligória passou a participar da feira agroecológica. Na medida que reassumiu o domínio do quintal, foi conseguindo tomar iniciativas na produção de alimentos e na economia com êxito, foi conquistando mais poder nas esferas pública e privada.

Se por um lado, a participação dos intercâmbios e a agroecologia foram fortalecendo sua capacidade produtiva, por outro, sua participação na Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia a fez se fortalecer como mulher. Há 8 anos, o Polo da Borborema, assessorado pela AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, vem realizando uma Marcha de mulheres camponesas para denunciar e romper com o patriarcalismo e o machismo. As Marchas são momentos de denúncia e de grande visibilidade pública das diversas formas de violência sofridas pelas mulheres e das desigualdades de gênero.

A primeira edição da Marcha aconteceu no ano de 2010, no município de Remígio (PB), com a participação de 700 mulheres. Nos anos seguintes, o que se observou foi a adesão de um crescente número de mulheres. Em 2016, a sétima edição levou às ruas de Areial (PB) mais de 5 mil mulheres camponesas, mostrando ser um movimento positivo de retroalimentação entre os processos de experimentação e politização do trabalho.

Cada edição da Marcha é precedida por um intenso processo de sensibilização e formação das mulheres, mas também dos homens do movimento. São realizados encontros de mulheres nos 14 municípios que fazem parte do Polo da Borborema e, a cada ano, é trabalhada uma metodologia voltada a desnaturalizar as amarras culturais que determinam as diferenças sociais entre os sexos. Há ainda o estímulo para que novos encontros e conversas aconteçam em seus grupos de fundos rotativos, de beneficiamento, na associação comunitária ou mesmo entre vizinhas.

Com certeza, a trajetória de superação de Ligória não é única no território da Borborema. Ela se repete em milhares de famílias. Mas, como sabiamente costumam analisar as lideranças do Polo, não há tempo para se baixar as bandeiras, a luta é todo dia. O ambiente de diálogo criado no território permitiu que os tensionamentos – no interior das famílias, mas também nos espaços públicos – sejam constantemente enfrentados. Nessa lógica de superação de conflitos, as relações e a cultura vão pouco a pouco assumindo contornos mais justos e solidários. Ainda longe de ser o ideal, Ligória bem sabe disso. Mas o mais importante é que ela e o movimento dessas agricultoras estão conseguindo marcar um lugar na luta pela vida das mulheres e pela Agroecologia.

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